Capítulo
II – Romance
Confesso
que nunca vivi um desses romances de livros. Romance que se tem conquista, que
se presenteia o amado ou amada com flores, presentes e carícias, aquele gosto bom
de beijo roubado e essas coisas todas que os personagens propiciam ao
imaginário coletivo. Fui a viúva prematura de um casamento arranjado.
Todo
livro de romance que li tinha esta mesma receita: um lugar, um encontro, uma
conversa e um “bang!” Lá estão os dois juntos, se amando e lutando para apenas
sentir o que sentem. Esse “bang” é tão estranho que ressoa no espaço mental
como um tiro violento, dilacerando qualquer resquício de dúvida no papel, na
tela de celular e computador, nestas tecnologias de hoje em dia, que ainda eu não
fui muito bem familiarizada. Mas, para escrever e sentir não é necessário
tecnologia, não é? Sentir é tão humano como o ato de pensar, e tão complexo
quanto. Essa não é a minha história ou aquilo que eu sinto. Me peguei pensando
no fato do lugar e do encontro e acho que é aqui que começa o que eu deveria
escrever de fato. Onde tinha parado? Sim, lembrei. O lugar e o encontro.
-
Atrasado novamente?
-
Desculpa, se a gente se atrasa 10 minutos em casa, já pega um congestionamento
caótico para chegar ao trabalho... – disse Valentim, recebendo uma pilha de
inscrições e exercícios, para cadastrar no sistema.
-
Tome. E Valentim, isto não me interessa... Você já foi avisado. Na próxima vez,
você está na rua. Não quero saber como você vai chegar aqui... Pegue carona com
a nave da Xuxa, dê o seu jeito!
-
Desculpa senhor. Já falei que não irá ter próxima vez.
-
Eu só estou querendo lhe orientar. É algo positivo para você!
-
Sim. Isto é bom para mim. Vou ir começar a trabalhar!
-
Isso, vai. Gosto de eficiência, de motivação. E você tem tudo isso. Apenas não
se atrase... Odeio a falta de pontualidade...
-
Sim senhor.
“Hoje
eu ainda cheguei com tempo e ele fica me cagando na cabeça! Vou me controlar,
hoje não é um bom dia para perder a minha paciência ou o meu emprego. Bom, para
mim ou para eu? Que merda isso” Pensou ele.
[...]
-
Sempre tão meiga, não é mesmo Val?
Valkíria
olhou para a porta do vestiário, largando sua mochila no chão, e enfrentando
aquele artifício existencial feminino que lhe encarava.
-
A não! O que foi menina estúpida?... Vai cuidar do seu perímetro e sai de perto
de mim... Credo... Encarnou em mim agora?...
-
É melhor você se cuidar po...
-
É melhor você cuidar um pouco mais da sua vida... Além de gorda virou
barraqueira? – Valkíria interrompeu a frase, jogando seus pertences dentro do
armário.
-
Gorda? Eu? – disse olhando de cima para baixo – A primeira musa fitness da
academia? Mais respeito...
-
A informação que eu vou te dar, são cinco dos melhores dedos que você irá
experimentar no meio da sua cara... E eu com isso garota... Some, passa fora
daqui!
-
Quanta agressividade!
-
Eu ainda nem fiz você nascer de novo. Quando chegar este dia, o seu leão de
circo, aí sim você vai ver o que é agressividade.
-
Com licença...
-
É o que se pede antes, para falar com alguém, e para de me chamar de Val...
Vaca. Haaaaaaaaaaa. Que raiva! Conte até dez Valkíria!
“Hoje
será um dia bem tenebroso... Começa com grosserias e espero que não acabe em
mortes... Vamos começar com essa porra de treino” Pensou ela.
Mão
na barra, mão no equipamento, pernas para o ar. Quanta gente espetada como
bonecos do quebra nozes de Tchaikovsky. Puxam ferro com as mãos para cima e para
baixo, pelo amor ou pelo ódio, pelo pavor ou pela vida, pela libertação de
alguns quilos. Vão para o inferno pelo pecado capital da vaidade?
Alguns
se rastejam e seduzem como a serpente do éden, a cobra mortal da tentação, onde
você se atenta para o fato de querer conhecer mais sobre o corpo, sobre o que
pensam, quais são os seus medos e o que eles escondem por baixo de tantos
músculos, quais são as suas verdadeiras histórias de vida?
-
Vamos fazer uma pequena parada para um descanso! Sim, Obrigada! – Valkíria falava
sozinha, mas não era de toda louca – Olhe quem está ali! É o grosseirão de
antes...
Ela
direcionou-se para Valentim, que estava parado perto da porta dos fundos, tentando
esconder que fumava cigarros na hora do trabalho. Calmamente, com os passos
contados, ela se aproximou e o analisou. Ele estava uniformizado, media
aproximadamente 1,85 metros. Tinha cabelos curtos e escuros, lisos e bagunçados,
e o seu rosto possuía uma certa feição fina e delicada, ao mesmo tempo que
demonstrava expressões fortes e másculas. O seu olhar era meio enigmático, um
daqueles que você sabe que esconde algo, um segredo ou uma iniciação
ritualística oculta. Era forte, mas aparentava ter um grande ponto fraco, uma
moléstia dentro da sua alma. Valkíria teve um arrepio, mas um bom arrepio,
aquele que se tem apenas uma vez em toda a vida:
-
Quem é você?
E
acelerou um pouco mais os seus passos.
-
Você é o grosseirão que não me deixou estacionar?
-
Como? – Valentim olhou assustado, voltando para o mundo.
-
Você trabalha aqui?
-
Sim. Eu sou personal da academia. Desculpe-me se eu fui grosseiro... Estava
meio atrasado e com medo de perder o meu emprego...
-
Tudo bem, Valentim é isso? – perguntou olhando para o crachá, que estava sobre
um peitoral ressaltado sobre a camiseta branca.
-
Ah, sim. Meio estranho, não é?
-
Nomes fortes como o seu eu tenho o hábito de não esquecer. Meu nome é Valkíria...
-
Oi Valkíria... Me apresentando novamente: meu nome é Valentim e eu não costumo
ser mal educado... Me desculpe.
-
Sem estresse, a primeira impressão não é a que fica, pelo menos não para mim. Eu
também não costumo tentar tirar satisfação assim, não sou barraqueira, ás vezes
só falo demais... Personal Trainer? Já faz algum tempo que é formado?
-
Não. Me formei há pouco. Ainda estou na experiência aqui. Você é nova aqui na
academia?
-
Não.
-
Como nunca lhe vi? O seu cabelo é ruivo, parece-me que natural... Você é muito
bonita!
-
Você é gay?
-
Não. Por quê? – Valentim estranhou a pergunta.
-
Sei lá... Meio estranho um homem reparar tão rápido o meu cabelo, não estou
acostumada a ouvir isso, sabe...
-
Estranho em que concepção? Agora eu tenho que elogiar a sua bunda e os seus seios
para ser mais homem ou para ser um? Ou tenho que dar em cima de você e zerar
todas as chances de mostrar alguma coisa mais concreta do que eu sou?
-
Não. Eu apenas achei estranho. Sem estresse. E gosto de sinceridade. As pessoas
em sua grande maioria não conseguem agregar valor naquilo que falam... Falam da
boca para fora... Mas você... Não sei. Me pareceu sincero e sensato.
-
Quantos adjetivos com a letra S!
-
Alguns, faço palavras cruzadas. Tenho que voltar a malhar, mas foi muito bom
lhe conhecer.
-
Posso lhe dizer o mesmo. Nos vemos por aí?
-
Nos vemos Valentim.
-
Valentimmmmm, me ajuda aqui por favor? – A musa fitness o chamava, havia
observado de longe ele com Valkíria.
-
Seu trabalho. Boa sorte com aquilo...
Valentim
voltou para a academia rindo do comentário, queria saber mais sobre aquela moça
dos cabelos ruivos que não parava de falar e o intrigava com seu olhar forte e
honesto. Valkíria tentava se concentrar, mas não conseguia ficar sem pensar no
fato de que aquele homem misterioso precisava ser decifrado. Ela sempre adorou
jogos de adivinhação.
E
se encontraram mais vezes durante aquela semana. Se esbarraram nos corredores
da academia, em uma padaria na hora do almoço, e até mesmo na portaria de suas
casas (moravam no mesmo prédio). E assim, depois de inúmeros encontros casuais,
um deles acabou dando certo. Valkíria e Valentim e um bar cheio de
confidências, em uma noite extravagante de bebidas e cigarros de sabor.
-
Não é estranho? – disse Valentim aproximando-se de Valkíria, que bebia no bar.
-
É. Essa é a décima vez que nos encontramos nesta semana? – ela perguntou,
virando e o cumprimentando com um beijo no rosto.
-
Por aí, viu.
-
E o que você faz por estes lados?
-
Recomendação de uns amigos. Disseram que o bar era bom, boa música e mulher
bonita. E pelo que vi, não se enganaram.
-
Não?
-
Não – disse ele observando Valkíria.
-
Quer tomar um ar e sair um pouco desta artificialidade?
-
Estou precisando.
E
os dois foram para um ambiente externo, para se recuperarem um pouco da
bebedeira e da música alta. Como vocês jovens conseguem suportar todo este
barulho?
-
Hoje em dia é tudo tão artificial... Tudo tão estranho... Sei lá... – disse
Valentim, apoiando-se com um pé na parede e acendendo um cigarro – Eu que vivo
neste mundo da academia é que sei, o quanto eu me deparo com situações
cotidianas de pessoas que são tão obcecadas por si mesmas, que se esquecem do
que existe aqui fora, e aqui fora tem um mundo tão grande para se conhecer,
você não acha?
-
É o que eu digo para mim mesma todos os dias, mesmo sem saber se é certo dizer
mim ou eu, sei lá.
-
O que você disse? – Valentim precisava confirmar aquilo que tinha acabado de
ouvir.
-
Que digo para mim mesma todos os dias, que existe um mundo maior do que esta
cidade, do que esta vida que eu tenho, maior do que tudo, maior do que eu...
-
É – respondeu ele.
-
Sabe que foi muito bom você ter sido grosseiro naquele dia. Eu fui lá com o
propósito de descontar a minha raiva em alguém de verdade, e não nos
equipamentos... Mas gostei de você. Ou você me achou desinteressante para não
ter dado em cima de mim de uma forma clara até agora, ou você realmente merece
o meu respeito e a minha consideração...
-
Você é bonita, inteligente e incrível...
-
É comprometido?
-
Não... Adorei muito conhecer você – ele esboçou um sorriso.
-
Você tem certeza que não é gay?
-
Sim...
-
Porque ser bonito, inteligente, educado e... – Valkíria virou para o lado e sem
perceber concluiu sua frase – Ou seremos grandes amigos ou seremos grandes
amantes...
-
Amantes seria mais o meu feitio...
-
Falei isso alto, não é?
-
Sim – ele riu baixando sua cabeça enquanto ela empalidecia do seu lado.
-
Desculpe a maneira agressiva que lhe abordei na academia. Meus dias ultimamente
não estão sendo dos melhores, meu pai não aparece em casa, e meio que tipo,
fico frustrada com muitas coisas, muitas responsabilidades. E nem sei o motivo
de estar falando isso com uma pessoa estranha, não é meu hábito, para deixar claro...
-
Não sou estranho, sou o Valentim, lembra?
-
Você entendeu... Não lhe conheço, você falou pouco de si mesmo, eu apenas
fiquei tagarelando minha vida e meus problemas, e minhas agressividades e... Eu
acho tão errado hoje em dia este preconceito absurdo de que o homem tem que
tomar a atitude, de que se a mulher fizer isto ela é uma vagabunda, de que
lugar de mulher é na frente do fogão, cuidando dos filhos, cuidando da casa,
vivendo pelo lar... Não estou dizendo que ela deve ser machona, e se quiser
também não vejo problemas, mas ela tem que ser independente, se amar, querer
para ela uma vida justa, digna, saciar as suas vontades, viver... Eu não vejo
mais nada desta porra, sabe?... As minhas amigas e inclusive a minha mãe, não
são e nem eram assim, sei lá. É tudo tão violado hoje em dia...
-
Concordo com você...
-
Só isso?
-
Ia terminar, sou um pouco lento com as palavras.
-
Desculpa. Juro que vou tentar ser menos assim, sabe, deste jeito.
-
Sem problemas, isso é bonito em você – Valkíria esboçou um sorriso e ele
continuou, sempre a encarando sem baixar os seus olhos – Ia dizer que hoje em
dia todos nós temos o direito de viver da forma e da maneira que quisermos, e
lutar por tudo aquilo que sonhamos e somos. Eu não vejo mais isso nos olhos das
pessoas... Elas estão sempre tão ocupadas com suas vidas tão cheias de outras pessoas
que nem suas amigas são, e acabam cedendo e vivendo aquele típico pensamento de
que devem se casar e ter filhos, cuidar da casa, do marido, e abandonar os seus
sonhos, suas carreiras, suas vidas... É muita ignorância... Chega a ser triste
pensar na humanidade desta forma!
-
Talvez seja isso... Ignorância. Gostei de você! Sincero, objetivo... Curti
muito você!
-
Então, o que você quer saber sobre mim, Valkíria dos cabelos ruivos e olhos sedutores?
-
Não sei mais nem o que quero saber sobre você. Você é uma caixinha de
mistérios...
BANG.
Aquele silêncio que chegava em determinados momentos trazia mais intimidade
para os dois. Era como se os assuntos já fossem todos esclarecidos. Valkíria
pegou na mão de Valentim, ele meio receoso olhou para os lados e acabou dizendo:
-
Não consigo entender como você consegue perder o seu tempo com alguém como eu,
essa aberração...
-
Alguém como você? Se liga vai... Amor próprio é muito bom, e eu aprecio muito
isso em um homem...
-
O que você quer saber a mais sobre mim?
-
Quero saber apenas uma coisa...
-
O quê? – Valentim firmou seu olhar em Valkíria.
-
Por onde você sempre andou?
-
Quem sabe procurando por alguém como você...
-
Desculpa mais eu não consigo mais aguentar...
-
E por que ainda não nos beijamos? – Valentim a interrogou com um tom de ator de
novela mexicana, puxando-a pelo braço e a trazendo até sua boca.
Quando
os lábios se tocaram, um músculo após o outro se contorceram. E duas almas
perdidas se encontraram. Sim. Isso sempre foi o amor. Mas isso nunca foi um
romance.
-
E agora? – perguntou ela.
-
Não sei Valkíria.
-
Quero você, mas quero você por completo. E isso não é assim tão normal para
mim...
-
E o que estamos esperando, para eu me completar sobre você...
-
Então vamos? – ela precisava dele como precisava beber água todos os dias para
sobreviver.
-
Posso lhe mostrar por onde eu sempre andei.
-
Me mostra mais de você... Eu nunca quis tanto alguém na minha vida.
Este
amor era tão bonito, que o trânsito não parecia tão barulhento quanto antes. E
todos os sinais pareciam ir para o verde, porque sabiam conspirar por esta
forma violenta e inesperada que é o amor. Eles trocavam olhares, apertos de mão
e carícias, ouviam músicas e as palavras sedutoras do pecado. Até que enfim,
chegaram naquela garagem já conhecida.
-
Quer subir? – ele pediu.
-
Sobre você? – ela respondeu, colocando seus dedos delicados sobre os lábios
dele, em sinal de silêncio.
As
duas bocas se uniram, e devagar e lentamente os olhos e as pernas se entrelaçaram.
As roupas foram caindo sobre o chão do carro, peça por peça, e os olhares meio
tímidos começaram a se prender para o corpo um do outro. Estavam conhecendo
todas as partes e sentindo todas as sensações, liberado um pouco mais de endorfina
e de calor.
Os
lábios dele tocaram os seios dela. E suas garras de predador a seguraram pelos
cabelos, enquanto beijava sua pele macia. Ela sentada sobre ele se perdia sobre
aquele corpo esculpido por uma dieta exemplar e treino, bagunçando o cabelo
dele e cavalgando como em um cavalo.
-Precisamos
sair daqui da garagem. Não quer terminar no meu apartamento?
-
Então vamos Valentim?
E
eles subiram, sendo gravados pelas câmaras do elevador, em um dos maiores amassos
já registrados no condomínio. Iria para o histórico de ambos, sessão dezessete,
fita número vinte e dois. Eu procurei e achei! Tenho as provas deste fato.
[...]
-
Perdi a noção do tempo. O que foi isso? – Valkíria perguntou olhando ao seu
redor. Valentim a observava, acariciando seus cabelos.
-
Não sei. Mas foi muito bom.
-
Nossa Valentim... Seu apartamento é tão ajeitado.
-
Moro sozinho, mas não sou um porco – disse rindo de suas próprias palavras.
-
Não quis dizer isso. Você é muito perfeito. E aquilo de aberração? Se quiser
falar sobre...
-
Agora o que eu quero é uma panela de macarrão com molho requentado... E você, o
que quer para o almoço?
-
Evasivo. Muito bem... Quero dois desses...
-
Boa escolha. Tudo no seu tempo. Não quero lhe perder.
Ele
beijou ela e foi em direção à cozinha, sem pudores e desnudo.
-
Mal sabe quem sou eu também. Como assim perder? É louco...
Ela
foi atrás dele, apenas de calcinha. Uma calcinha rendada e preta.
-
Louco por suas loucuras, os seus impulsos e não impulsos... – disse ele com uma
breve ereção.
-
E meu macarrão? Vamos ver se você sabe cozinhar tão bem como fazer amor...
-
Sei muita coisa. Digamos que sou um homem moderno também.
-
E perfeito.
-
Não é seu celular que está tocando? – perguntou Valentim, apontando para a mesa
da sala.
-
Ai que merda, droga! É o meu irmão, mas ele que espere porque estou com muita
fome e não quero sair daqui nunca mais.
-
Você é linda, é mim e eu.
-
Isso que você disse é lindo. Mim e eu. Você é o eu em mim – ela respondeu.
-
E em mim você é o eu – disse ele pegando uma panela e indo em sua direção,
roubando-lhe um beijo.
-
Faz o favor de não sair da minha vida tão cedo. Porque chega de perder. Cansei
de perder as coisas boas da minha vida.
-
Não vai mesmo atender? – ele insistiu.
-
Não. Meu irmão arruma carona. Está com uns amigos e se vira muito bem. Aliás,
está aí uma coisa que nós aprendemos desde que nossa mãe morreu. A nos virarmos
sozinhos.
-
A quem diga que isso não é bom, eu não sei se você. Mas, eu gosto de não dar
satisfações do que faço da minha vida, de me virar sozinho... Gosto de não ter
que ouvir alguém jogando na minha cara que paga as minhas contas, como se eu
fosse apenas alguma obrigação.
-
Bom, no meu caso em específico, isso não acontece. E meu pai pouco se interessa
por qualquer coisa. É o provedor de dinheiro, aquele que paga as contas. Acho
que só. E seus pais?
-
Fui criado pela minha avó.
-
Eles morreram? Me desculpa...
-
Não. Só vim morar com ela cedo. O que mais me conta sobre você... Do que você
gosta? O que você é além de Valkíria?...
-
Uhm... Sou uma jovem que aprendeu a viver com suas pernas, mas ainda não
aprendeu a ter o seu próprio dinheiro. Que tem a consciência de que está
começando a tomar algumas providências, e que às vezes tem medo do próximo
passo. Por isso acho que fico estagnada a fazer coisas que perdem até o sentido.
Queria ser designer, eu amo este lado comercial das ideias, a criatividade, a
concepção. Quase fui arquiteta, mas deixei da faculdade ainda no primeiro
semestre, não era exatamente o que eu queria. Tenho uma ótima relação com meu
irmão, sendo que faço muito mais do que ele me pede, por quem sabe sentir ser
minha obrigação protegê-lo de meu pai e da sociedade que o cerca, é complicado
para ele, ainda mais neste país tão arcaico...
-
Protegê-lo? Desculpa...
-
O meu irmão é gay. Mas não gosto desta palavra, rotula muito as pessoas. Gosto
de falar que é a minha irmã, ou algo do gênero. Ele prefere e se identifica
desta forma. Sempre o tratei assim. E nunca consegui o ver diferente, pelo
contrário, amo ele ainda mais por ele ser verdadeiro, honesto, determinado,
engraçado, sabe, por ele ser quem ele realmente é. Exatamente igualzinho...
-
Ata. Compreendi agora. O seu pai não aceita tudo isso, por isso...
-
Sim, por isso protegê-lo do meu pai. Ele já sofreu muito preconceito dentro de
casa... Meu pai já chegou a socar a cara dele quando brigaram uma vez... E
neste contexto quem acabou na pior foi minha mãe... Que apanhou quieta, porque
segundo ele, era dela os genes ruins do meu irmão...
Valkíria
se emocionou e parou de falar. Valentim se aproximou e a abraçou trazendo-a
para o seu peito. Ela estava sendo honesta e mostrando muito mais do que o seu
corpo.
-
Eu admiro muito você. E não precisa esconder nada que você sente. Você é
incrível, chora o quanto quiser, tira para fora tudo isso, mas não se esqueça
de que você está certa, você é maravilhosa, tem uma personalidade maravilhosa,
é corajosa e é sim determinada. Você é verdadeira, você tem muito amor aí
guardado... E isso é muito mais importante do que qualquer dor que você
sinta... Ame. Mas ame cada dia mais quem você é, aquilo que você faz, aqueles
que você quer bem, e até aqueles que você não quer. O ser humano pode continuar
errando e viver na sua própria ignorância, ou amar os próprios erros e os erros
alheios e ir além de tudo isso, ir buscar aquilo que o fortalece, que o faz
feliz e realizado, sem amarguras e ressentimentos. O amor é o sentimento mais
forte e mais verdadeiro que alguém pode ter. E de tudo o que aconteceu hoje,
estou ciente apenas disso: você é a verdade e a força que eu quero. É você que
eu quero amar. E quero um pouco deste seu amor todo... Macarrão?
-
Você consegue fazer alguma coisa em mim. Efeito de alguma magia, eu acho...
Obrigada pelas palavras, faz um bom tempo que eu procuro alguém que as diga. O
que me torna sim, uma pessoa carente por palavras afetuosas, não se engane...
Uhm este macarrão está delicioso...
-
Isso se chama fome...
-
Com uma pitada de amor, vai...
Os
olhos de ambos celebravam o que acontecia. Trocas de sorrisos, palavras
aleatórias de boca cheia. Quem diria que naquela manhã em que se conheceram, um
apenas estava atrasado querendo morrer e outro apenas queria se exercitar para
esquecer-se da vida? E agora ambos desnudos, conversavam como se conhecessem há
muito tempo, de uma forma natural e espontânea. Se eu não fosse a autora deste
livro eu diria: que linda estória de amor! Este livro não supera o amor. É
feito sim com personagens reais, mas transcende o fato que quero abordar.
Vamos
celebrar o amor? Vamos celebrar a igualdade? Ame acima de tudo, independente de
quem você é, do que você prefere. É sobre amor e sobre as formas modernas de se
amar. Ame um homem, ame uma mulher, ame o seu cachorro e ame a si mesmo. Não
seja ridículo a ponto de achar que o seu amor é melhor. Não existe amor melhor.
Apenas o amor. Que coisa linda amar. Não se importe com as opiniões estúpidas
de quem não é tão bem amado. Se você ama alguém, independente de seu sexo, isso
não é nenhum pecado. Vamos amar e nos amar, por que causar sofrimento e dor? O
amor é a salvação, mas o amor espontâneo, aquele que vem da verdade, não o amor
eloquente que afeta os sentidos e tapa a visão. O amor sadio, o bom amor que
não transmuta o seu nome por fanatismo e obsessão.
Divaguei,
divaguei, e eles nem me ofereceram macarrão, e pelo visto acabaram de comer
tudo... O amor aumenta até a fome. Para onde foram aqueles dois?
-
Não quero nunca mais sair daqui Valentim, deste seu quarto, de perto de você,
deste seu mundo que para mim é perfeito. É tão bom estar dentro do seu
abraço...
-
Então não vai... Fica.
-
Já é tarde. Meu irmão deve estar preocupado. E agora?
-
Agora deixa ser como é. Moramos a dois andares de diferença.
-
Pois é. E isso me preocupa um pouco. Não lhe preocupa?
-
Ué... Não entendi! Não.
-
Nada não... Deixei-me levar pelos pensamentos... Mas agora tenho que ir... Meu
irmão deve ter ligado para a polícia!
-
Quer fazer alguma coisa hoje à noite?
-
Tipo?
-
Tipo sair beber, dançar um pouco, jogar uma sinuca, viver a vida?
-
Eu passo aqui às 21:00?
-
Não pode ser um pouco mais cedo? Amanhã pego o turno do dia inteiro.
-
Às 19:00hs?
-
Pode ser...
-
Até mais então...
-
Até mais...
-
Vamos ver o que você esconde Valentim...
-
Nada que possa lhe assustar... Eu acho.
Valkíria
beijou Valentim, vestiu suas roupas e deixou o apartamento, feliz, leve e
segura do que tinha acabado de fazer. Valentim ficou na cama, extasiado por um
sentimento que não conseguia controlar, e que para ele não era bom.
“Será?
Isso não pode ser real! Ela é perfeita. E se ela não gostar de mim pelo que eu
sou? Essa anomalia, essa aberração... Isso não pode estar acontecendo
novamente... Mal você me deu um duro golpe, ser humano ingrato... Mas com a
Valkíria parece haver uma coisa diferente. Uma não, muitas coisas diferentes.
Mas como pode ser tudo isso?” – Pensou Valentim.
O
ser humano ingrato da vez era aquele ser dos cabelos compridos, lisos e loiros.
O ser humano que ele acabava de esquecer, e que nunca mais desejaria ver em sua
frente, para o resto dos seus dias. Estava feliz, e toda a sua felicidade
estava ligada aquela moça dos cabelos ruivos chamada Valkíria. A jovem mais
determinada e verdadeira, e receptiva ao sujeito que ele era. Uma anomalia, um
alguém diferente.
“Preciso
de um bom banho, uma boa música, um Jazz e só. Já sinto sua falta Valkíria.
Preciso ouvir a sua voz, e falar um pouco mais de mim. Espero que você me
aceite pelo que eu sou, pois eu te amo muito.”
Acho
que fui muito invasiva, e é hora de deixa-lo a sós com seus pensamentos. O dia
foi movimentado para este jovem de cabelos escuros, e a noite ainda nem
começou. E você Valkíria, como você se sente?
“Eu
me sinto tão bem. Há muito tempo não me sentia assim...”
-
Obrigado Valkíria! Ainda bem que não dormi em casa, fiquei bem feliz por você
não dar notícias de onde estava. Sai para uma festa e some, como assim? – disse
Júnior sentado na porta do apartamento, mexendo em seu celular.
-
De nada Valmor...
-
Não, por favor. Tive que ficar conversando com a Dona Lúcia, porque eu me
esqueci da chave – sussurrou as últimas palavras.
-
Dessssssculpaaaaa mesmo. Isso não desejo nem mesmo para o papai. Tá eu desejo.
-
Abre logo essa merda que quero tomar banho e assistir televisão. Dia perfeito
para uma bacia de pipoca e um bom filme de drama.
-
Credo que horror... Tenho um convite melhor...
-
Ai lá vem você, com seus convites irrecusáveis – disse ele, levantando-se e
esperando Valkíria abrir a porta.
-
Vamos sair beber hoje à noite e lhe apresento um rapaz...
-
Sim, quem é ele...
-
Espera eu acabar faz favor... Ele é meu rapaz, e estamos muito interessados um
pelo outro, passei a noite com ele e acho que nunca me senti tão segura quanto
a isso... Mas vamos falar lá dentro, porque as paredes costumam ter ouvidos
neste andar... Boa tarde Dona Lúcia.
-
Boa tarde Valkíria – gritei de dentro do meu apartamento.
-
Vamos – disse Júnior, que não conseguia parar de rir – Me conta mais sobre isso
que fiquei assim, bem curioso...
-
Agora sim, agora me faça as suas perguntas... – disse ela, fechando a porta.
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