Capítulo
VII – Predador Sexual
(Valentim)
Eu
não tinha mais contato com ninguém que se dizia a minha família. Estava sozinho,
morando com aquele que parecia ser o grande amor da minha vida. Mas, as coisas
nem sempre são o que aparentam assim ser. E naquele âmago e anseio tão grande,
que tive para ir buscar a minha felicidade, deixei tudo para trás. Não me
importei com os sentimentos dos outros, apenas com os meus próprios
sentimentos. Sim, eu fui um perfeito egoísta. Aquele sonho de liberdade nem era
tão bonito assim.
Foi
encantador a maneira que sempre ouvia um eu te amo pela manhã, com bilhetes
esparramados pela casa, café da manhã simples (onde ás vezes nem café tinha),
carícias e comentários sem sentido. Aquilo tudo que a gente sempre vê nos filmes
da cultura americana. Mas essa não é a minha cultura. Foi assim que descobri
que estava perdendo o controle. E existe coisa pior do que isto?
Samantha.
Esse era o nome daquela vagabunda.
Samantha.
Com este nome eu previ que algo tempestuoso estava chegando. Tinha cor em
demasia onde antes era tudo preto e branco em um cinema mudo.
Ela
era alguém que eu nunca me afeiçoaria. Do tipo arrogante, que vê oportunidade
acima de todas as coisas. Aquele ser humano que fala tanto, e nunca faz nada.
Para ela, viver como uma stripper seria a passagem para uma vida de prestígio e
fortuna. Era diferente das outras garotas. Nos seus olhos só existiam cifrões.
Era fácil conquistá-la, bastavam algumas boas notas de cinquenta ou cem, que
você poderia usufruí-la como seu próprio patrimônio. Era vendida. Para mim,
gostava de ser uma vagabunda. Tem gente que nasce para ser vagabunda de profissão.
-
Prazer, Valentim – foi o que eu disse por educação.
-
Prazer, Samantha. Bonito mesmo seu namorado, viu Leo – ela olhou para ele e voltou
a me encarar de uma forma suja – Ele sempre fala muito de você...
-
Que bom que fala... – disse olhando para Leo. Pela primeira vez na vida ele não
aparentava uma reação tão imediata, estava anestesiado.
-
Nem ligue... Ele tomou umas coisas... – disse ela revirando os olhos e
sorrindo.
-
Como?
-
Não vai fazer mal... E afinal, hoje temos gente com grana aí... Dinheiro
naquele palco é o que não vai faltar...
-
Leo, você tinha me prometido...
-
Eu sei meu amor. Mas é que ela...
-
Ela o quê? Lhe obrigou? Se você não quisesse isso...
-
Não preciso ouvir sermão agora...
-
Sério isso gente? DR? Me desculpa. Não queria ter causado isso... Se soubesse...
-
Não se estresse Samantha. Valentim que deu de ficar atacado ultimamente, por
pouca coisa.
-
Pouca coisa? E se te pegam assim? Sabe que aqui dentro não se pode fazer
isso...
-
Fazer o que Valentim? – indagou Madame, uma drag que usava vermelho, sempre com
a maquiagem carregada, seu sotaque espanhol, meio fora do peso, brilhando como
uma bola de espelhos de discoteca. Usava uma peruca da cor do vestido, e um
sapato com salto agulha amarelo, cheias de pedrarias que pareciam pequenos
diamantes coloridos – O que temos aqui? Leonardo não sobe no palco hoje, vem
comigo que temos que conversar. E vocês dois andem, temos pessoas importantes
sentadas na primeira fila. E são contratados para um espetáculo e não para
bater papo nos corredores. Menos roupa e mais ação! Quero olho vivo no homem de
branco da primeira fileira, bancário. É nele que deveriam colocar os seus esforços,
não em alguém drogado como este loirinho aqui...
-
Madame Kassandra, ele não... – não consegui acabar.
-
Quer vir conversar também?
-
Não senhora, preciso...
-
Precisa? Então manda quem pode e obedece quem tem juízo, Valentim!
-
Sim senhora.
-
Não cheguei onde estou, a incrível Madame Kassandra Cybernética, sendo solicita
aos caprichos dos meus homens. Coloque gel nesse seu corpo e faça o que sabe fazer
de melhor. Ou quer morrer aqui? Ficar aqui até não ter mais validade para subir
naquele palco e ter que esfregar o chão quando todos que prestam alguma coisa
já tiverem ido embora?
-
Eu estou indo.
-
E você Samantha? Pelo que ouvi não está tão isenta assim. Então hoje está de
molho. Mudei de ideia porque sou louca.
-
Mas Madame...
-
Mas nada. Quer voltar a rodar sua bolsinha para aquele cafetão na Zona que te
tirei?
-
Não.
-
De molho. Passa! Se não fosse por mim, essa casa de espetáculos não entraria
nos eixos. Sou a porcaria do globo de espelhos daquele teto! Cada dia mais
gloriosa!
Naquele
momento tudo que eu menos queria era subir no palco e tirar a minha roupa. Qual
é o sentido desta porcaria se você não pode ajudar quem você ama? Se você não
pode estar do lado da pessoa que deu algum sentido para a sua vida de desgosto?
Mas eu fui. E posso garantir que foi um bom espetáculo, não um dos meus
melhores. Estava sem cabeça para qualquer coisa.
Comecei,
como sempre, com uma das minhas fantasias. Nada de tão extravagante. O figurino
era feito por Madame, e ela sempre sabia o que colocar em cada um, exaltando
além do corpo a própria personalidade assumida durante o ato. Entendia deste
negócio.
Foi
neste dia que nasceu minha alma de predador. Não podia mais ser aquela presa
fraca, ameaçada pelo mundo, onde todos sempre apareciam acima de mim na cadeia
hierárquica de poder.
Já
era meio bruto no palco, só elevei um pouco mais a rudeza. Não permitia que se
apossassem tanto assim do meu corpo. Mas, confesso que era bom ver todos
aqueles homens me olhando como uma alcateia selvagem.
Na
primeira fileira, o bancário me surpreendeu. Era discreto, mas não tirava os
olhos de mim. Lembro que a única coisa que esboçava, eram passadas de língua rápidas
sobre seus lábios, como em um gesto de querer devorar o meu corpo e meu
personagem de cena. Eu tirava minha camisa, depois minhas calças e por último
minha roupa de baixo (que geralmente era uma cueca branca ou mais curta do que
as normais) tudo isso coreografado e ensaiado durante a semana.
Acabei
a primeira parte do que sempre fazia, e lá atrás ouvi dizer que Leo não estava
mais no show, Madame tinha acertado suas contas e que a próxima a sair seria
Samantha, se não mudasse os seus comportamentos. Como ficaríamos agora?
Me
propus a fazer o que antes nunca havia feito, nem com Leonardo. Elevei o
espetáculo, arriscando meu relacionamento. Subi no palco e depois de tirar toda
a minha roupa novamente, bati no rosto do bancário com meu pênis ereto. Ele
jogou um bom masso de notas de cem sobre mim, juntei tudo deixando ele passar a
mão por minha bunda e quase me chupar.
Mesmo
sabendo que boa parte daquilo era de Madame, tinha garantido o que Leo ganhava
pela semana. Ao menos por aqueles dias não teríamos com o que se preocupar. O
problema seria: o que fazer depois daquilo?
Comigo
no palco não daria para pagar as contas. E Leo, com a influência que Madame
tinha, não iria conseguir nada tão cedo. E foi o que aconteceu, sendo taxado
como irresponsável e drogado até posteriormente quando nos desentendemos.
Depois
de andarmos por vários minutos em silêncio chegamos em casa. Se pudesse
permanecer no silêncio por toda a vida permaneceria. Mas nunca gostei de levar
assuntos mal resolvidos para a cama. Então esperei até ele estar novamente
consciente para perguntar:
-
Você acha certo o que você fez hoje? Nós queremos sair dessa porcaria de vida
que levamos e o que você faz? Você vai na conversa de uma vagabunda e usa...
-
Espera aí Valentim. Ela não é uma...
-
É o que então?
-
Você vale alguma coisa, não vale? Por que ela não pode valer? Ou você se
considera melhor do que todos aqueles que estão lá fazendo a porra que você
faz, e fazendo bem melhor por sinal!
-
Eu não me importo se fazem melhor, se fazem pior ou qualquer coisa... Eu entrei
nessa por você... Entrei nessa por nós... E você?
-
Eu o que?
-
Olha o que você fez cara! Eu não tenho para onde ir se isso der errado, você...
-
Eu? Eu posso voltar para a casa dos meus pais?
-
Você tem tudo que quiser...
-
Não, não. Peraí. Não acredito que você está insinuando que eu posso ter o que
quero, por isso sou o quê? Irresponsável? Eu penso em nós sim! Agora você vai
me julgar porque eu não consigo ficar sóbrio dentro desta maldita vida?
-
Eu não estou julgando...
-
Você está dizendo que eu consigo as coisas fáceis cara? Não. Realmente eu acho
que você não está entendendo bem as coisas! Eu, escuta bem... Eu te amei e
guardei tudo isso aqui – disse isso apontando para o peito – você sabe o que é
isso! Você sabe bem o que é isso! Eu apanhei do meu pai cara, por você. Eu ouvi
da minha mãe que eu deveria ter sido um aborto por causa de você. Eu fui deserdado
e humilhado pelo meu pai em público por causa disso que eu tenho aqui no meu
peito, que é para você. Eu fiquei a porcaria de três meses em uma clínica de
reabilitação sendo que não fumava, não bebia, apenas amava você. Eu que fui
enxotado de casa para vir viver com você, só com a roupa do meu corpo, e tenho
que passar e ouvir piadinha na rua. Porque você não ache que é fácil assim ser
o filho do empresário do ano e se assumir com o namorado, andar de mãos dadas
com o namorado, morar e construir uma vida com o namorado. Você acha que Madame
me deixou lá por quê? Os enrustidos que trabalham para meu pai, seus amigos e
conhecidos, querem ver a bunda lisinha e branca do filho do grande Mendes, o
homem de aço, o homem blindado. Jogam aquela porcaria de dinheiro, porque
querem ver a linhagem do homem-homem rebolando e passando a mão no próprio pênis.
Você acha que eu me sinto confortável? Você acha que isso é ser irresponsável?
Você acha que eu não tento ser melhor por você todos os meus dias? Você não acha
que eu...
-
Chega amor. Para com isso por favor! Eu sei disso tudo. Eu sei disso tudo. Para
por favor. Você não merece isso. Você não merece. Eu te amo e a gente vai dar
um jeito. Nem que eu tenha que me ajoelhar para a minha avó, pedir perdão para
meu pai por ser essa aberração...
-
Nós sofremos muito. Mas, sabemos que o que mais importa disso tudo é nosso amor.
E isso nunca vai acabar, vai?
-
Não. A gente dá um jeito. Sempre conseguimos superar nossa própria vida. Eu te
amo. Desculpa. Vem cá!
Naquela
noite nos amamos como na nossa primeira vez. Isso eu não me esqueço. Não seria
aquilo que tiraria o nosso sossego. Daríamos um jeito, juntos daríamos um
jeito. Nosso principal problema é que nós havíamos aprendido a fazer as coisas
juntos e nunca separados. Sozinhos nós éramos fracos, mas juntos nada poderia
nos corromper, nada exceto Samantha.
Aquela
cobra mal amada vivia jogando com as pessoas, e o escolhido da vez era Leo. Ela
tinha em mente, como me disse mais tarde, que apenas com ele chegaria no homem
certo, aquele que seria capaz de lhe dar os luxos e prazeres que sempre achou
que estava destinada a ter, coitada. Leo acreditava muito nas pessoas. E o
problema não era acreditar, mas acreditar nas pessoas erradas. E para ela, o
filho do empresário exemplar era um ótimo achado e degrau para subir na vida.
A
primeira coisa que fez, com a intenção de se livrar de mim e da minha constante
presença, foi arrumar um estágio de meio período na academia de um cliente de
Madame. Ganhando um pouco mais, deixei de ir todos os dias me despir para
outros homens e passei a dar o meu melhor, naquela que poderia ser a salvação
para mim e para ele. De pessoa não grata ela passou a ser vista como alguém
redimida, aquele estágio (fazendo faculdade de Educação Física) poderia me tirar
da vida noturna de uma vez. Leo também conseguiu um emprego, ajudando a
traduzir alguns livros franceses e ingleses, não ganhava muito, mas conseguia
colaborar para pagar as contas. Nisso foi grato aos seus pais, sua educação
sempre foi muito primorosa.
Nas
minhas ausências, Samantha se mostrava sempre prestativa. Buscava livros e
dicionários na biblioteca, café quando ele virava as madrugadas para acabar
algum capítulo, e eu não tinha a menor ideia de que isso tudo fosse apenas um
meio que ela teve de chamar a atenção dele.
Atarefado
e cada vez mais sem tempo para nós dois, ela ganhou espaço. Não lembro bem
quando, mas me deparei um dia com a situação em que não eram apenas duas
pessoas naquela relação. Naquele loft tão confortável para dois, existia a
presença do três, que aos poucos assumia uma posição perigosa dentro de nossas
vidas.
Não
posso culpá-la por tudo. Eu gostava de saber que, apesar de ter sido posto na
rua, eu estava me fazendo na vida. Crescendo dentro daquilo que era permitido
para mim, um alguém que nunca teve nada além de si mesmo. E dei a sentença
final à aquele relacionamento quando aceitei o que Madame Kassandra me ofereceu
alguns meses depois:
-
Não precisa ter relacionamentos com nenhum deles. É apenas sair, fazer o que
você faz aqui para um punhado de gente aleatória, para uma só, ganhando mais,
se fazendo na vida garoto. Tenho muitas propostas das quais você não deixaria
passar assim tão fácil, coisa de três mil reais para cima. É só você escolher
meu querido.
-
Madame, com todo o respeito. Isso não é para mim. Estou ganhando para me
manter, tanto dançando, como lá na academia. E acho que Leo não vai gostar nem
um pouco desta ideia...
-
Leo, Leo... Escute o que lhe digo, pense mais em você. Tenha ambição. Leo tem
miolo mole, é um alvo fácil de ser fisgado... Tenho experiência, sei bem disso.
Além de que, ele nem precisa ficar sabendo. Leo vira um leão e um dia lhe
engole!
-
Como não saber? Ele é meu namorado, isso não se esconde...
-
Tão romântico ainda. Pode usar um nome fantasia. Acho que lhe assenta bem o
codinome “Predador Sexual”. Tem personalidade e estilo. Fora que, quem não quer
sair com um verdadeiro predador?
-
Eu preciso pensar. Não posso dizer que sim e nem que não, necessito do
dinheiro.
-
Pensar no que? Não existe esta opção. Ou sim e agora, ou não. Então? Igual a
você existem milhares de homens. Não é especial. E consigo, com uma boa
conversa, vender outros corpos que não o seu, querido. Aproveita agora para
fazer seu pé de meia. Envelheceu, aqui não vai ficar. E acho que aquele emprego
da academia mal paga suas contas. E é um estágio. Quem garante que você será
efetivado? Sai de lá, não fique devendo favores para Samantha. Uma ou outra
hora eu sei que ela cobra. E à vista, conheço aquela piranha.
-
E esse codinome... – minha mente avarenta começava a destruir minha vida.
-
Não se preocupe com essas formalidades dos negócios. Pense na maneira que vai
querer gastar o seu dinheiro. Faça um agrado para o Leo. Vai conseguir até
passar mais tempo com ele.
-
Quando começo?
Eu
havia vendido a minha alma para o Diabo. Um Diabo travestido, que usava um
salto agulha. Dias depois ouvia pela primeira vez algo sobre mim, pela boca
daquele que não deveria nem saber que o Predador existia.
-
Você viu Valentim?
-
O que Leo?
-
Esse tal de Predador Sexual?
-
Quem? – indaguei porque não estava acreditando naquilo.
-
Um homem, digamos um acompanhante de luxo, que está causando com os empresários
da cidade. Ouvi da Samantha, e está nos jornais. É lá da casa de Madame
Kassandra. Não ouviu nada sobre isso?
-
Não. Estou indo pouco lá.
-
Como indo pouco? Vai quase todo dia. Até deixou de ir algumas vezes para a
academia. Espero que isso não prejudique nada para você.
-
Estou indo. Mas faço meu trabalho e volto. Nem com a Samantha eu falo.
-
Sim. Ela me disse. E isso é bem sua cara mesmo. Ela lhe conseguiu o estágio e
tudo...
-
O que? Termina. Eu preciso agora gostar dela por isso, venerar ela como você
faz? – alterei minha voz e passei a ser mais agressivo, jogando contra a parede
uma camiseta que estava na minha mão.
-
Eu não faço isso e não quero brigar com você. Mas você está muito estranho.
Nunca me tratou desta forma.
-
Desculpa. É que estou cansado desta vida dupla.
-
Então deixa de ser stripper! Com este livro aqui que estou traduzindo, e com a
bolsa lá do seu estágio, mantemos em dia as contas.
-
Manter as contas em dia... Isso sempre é o foco das nossas coisas. Nunca me
perguntei sobre o que eu queria ser na vida. Sinceramente, não é stripper, nem
Personal Trainer, nem porra nenhuma disso.
-
E você acha que eu queria fazer o que faço?
-
Está difícil as coisas. Eu vou sair para refrescar um pouco minhas ideias.
-
Vai. Assim posso acabar de traduzir isso aqui e me concentrar no que estou
fazendo...
-
Com ela você consegue. Isso que mais me surpreende.
-
Não vamos começar com isso novamente.
-
Oi. Posso entrar? – disse Samantha.
-
Pode. Estamos falando de você. Olhe que mágico! Vou deixar vocês dois sozinhos.
E a propósito, obrigado pelo estágio mas eu não preciso dele. Não preciso de
você e de seus favores.
-
Nossa! O que deu em você?
-
Não liga Samantha. Ele está afetado hoje.
-
Afetado Leonardo? Sempre estou afetado para você quando ela está por perto, já
reparou? Estou sobrando aqui. Com licença.
-
Valentim, volta aqui...
-
Deixa Leo, ele vai se arrepender dessas coisas. Você mesmo me disse que sempre
faz isso. Você tem que parar de aceitar esses ataques. Sério. Ele não coopera
muito com as coisas.
Eu
ouvi aquilo, mas não quis voltar e dar mais razão para o argumento. Eu apenas sei
que saí e quando voltei, Leonardo tinha mudado. Foi ali que percebi que aquilo
não daria mais certo. E não por falta de tentativas. Desde sempre tentar foi o
que nós dois mais fizemos. O problema era ela. Ela conseguiu aquilo que mais
queria.
-
Leo temos que conversar.
-
É? Sobre o quê?
-
Sobre nós.
-
Estou sem saco para nós hoje Valentim – disse ele folheando um livro.
-
Se é assim. Nem sei o que faço aqui ainda.
-
Acho que agora quem precisa de um pouco de ar sou eu. Ficar aqui traduzindo
essa porcaria por nós, não justifica a minha maneira de me comportar. Vida
dupla. Nossa!
-
Como?
-
Tudo no seu tempo Valentim. Tudo no seu tempo.
E
com isso ele saiu, dizendo tudo que queria falar com palavras mais cheias e
redondas. Mas ficou por isso, com estas frases que dizem tudo e não dizem nada.
Eu
desmarquei o que tinha para a noite. Precisava descansar daquele dia e da minha
vida. Tomei meus calmantes e apaguei. Acordei perto do meio dia e nem me dei
conta da hora em que ele tinha voltado. Mas ele estava lá, fazendo almoço, o
que para mim era bem estranho. Até por que, eu cozinhava para nós dois.
-
Que cheiro bom! O que deu em você?
-
Nada. Só resolvi cozinhar.
-
Resolveu assim do nada?
-
Sim.
-
Quer ajuda com alguma coisa?
-
Não – ele não tirava os olhos do fogão, falando de um modo automático.
-
Bom, então está bem. Vou acordar direito e trocar de roupa.
-
Quando estiver pronto lhe aviso.
E
me avisou. Eu que não tinha percebido isso antes.
-
Estava saboroso. Até vou repetir.
-
Uhm.
-
Uhm o quê? Por que ficou quieto o almoço todo? Fiz alguma coisa? Você nem tocou
na comida do prato.
-
Estou sem fome. Não quero ser devorado por você predador.
-
O quê?
-
Predador Sexual. Que homem, eihm!
-
Quem foi que lhe disse isso?
-
Samantha me disse isso. Me contou antes do que você. Como sempre acontece.
Agora entendo a cisma que você tem com ela!
-
Entende? Nossa...
-
Nossa digo eu! Estou dormindo com o predador sem saber. O grande predador. Que
vacilo o meu! Dormindo com uma verdadeira fera do meu lado e não percebi isso.
De graça.
-
De graça? Eu não sou...
-
Você não se vende por dinheiro?
-
Ela não disse tudo bem esclarecido...
-
Esclarecer o quê?
-
Posso falar?
-
Fala.
-
Eu sou o Predador sim. Mas em nenhum momento me deitei com nenhum homem. Faço o
que sempre fiz desde que comecei a trabalhar na noite. Nada a mais e nem a
menos. Peça para Madame...
-
Peça para Madame... Acha que ela vai se abrir comigo e falar sobre os seus
negócios? Me poupe cara. Deve esfregar seu pinto na cara deles também...
-
Nossa, isso ainda. Aquilo não ajudou a gente a se estabilizar na semana em que
você vacilou? Acha que eu gostei de fazer aquilo? Acha que aquilo preenche a
minha vida de alguma forma? Você preenche a minha vida! E fiz aquilo pensando
na gente, no nós...
-
Sempre esse nós. Nem sei mais se esse nós existe. E cadê esse tanto de
dinheiro? Pelo que sei, pouco o Predador, quer dizer você, não ganha!
-
Está tudo guardado ali, naquele pote. E não gastei um tostão, porque estava
guardando para nós sairmos desta vida.
-
Nós. Ainda com isso?
-
Ainda sim... O quê?... Leo, eu não estou muito bem – comecei a ficar meio tonto
e sem reação.
-
É?
-
Você?
-
Valentim me desculpa... Meu Deus, o que é que eu fiz? Não deveria ter ouvido
Samantha!
Lembro
apenas que caí no chão e ouvi a voz daquela vagabunda. Quando dei por mim
novamente, estava sozinho, sem nenhum dinheiro e nenhuma roupa no armário. Eles
haviam levado tudo, tinham tirado tudo de mim. Meu primeiro impulso foi ir até
Madame Kassandra, atrás de Samantha e de meu dinheiro. Não me importava mais
com Leonardo. Não deveria me importar com alguém que colocou remédio para
dormir na minha comida e levou tudo aquilo que eu tinha. Ninguém sabia sobre o
paradeiro dos dois.
Não
consegui depois daquilo me sustentar, ou pagava o aluguel ou tinha o que comer
durante o dia. O predador não era mais nada, eu havia criado um mito que havia
sido superado. Voltei novamente para a rua, só que desta vez sozinho e sem
nada.
Meu
primeiro impulso foi procurar minha avó. Sem sucesso algum. Bati e ninguém me
atendeu. Deduzi que ela não queria nunca mais me ver na sua frente, então dormi
ali mesmo, na porta da casa, nos mesmos degraus em que desci para dizer que
amava Leo. Tentava amolecer seu coração pela insistência. Pela manhã outra
grande surpresa. Sabe aquele ditado: se está ruim pode piorar?
-
Valentim? O que está fazendo aí? Quanto tempo meu filho.
-
Oi Dona Vera. Sabe de minha avó?
-
Sua avó? Você está brincando?
-
Não. O que foi Dona Vera? Por que esta cara?
-
Por que foi a única que Deus me deu, e ela morreu meu filho.
-
Como?
-
Logo depois que você saiu daqui ela morreu. Estava bem adoentada, coitada. Pelo
que ouvi foi o coração que estava fraco. Coisa de gente velha, meu filho.
Decepção das grandes e gente velha e problemática, sempre acaba com o coração.
-
Eu... Eu nem fiquei sabendo disso.
-
Bom, foi tudo bem rápido. Nem velar ela o filho quis. Fechou tudo aí e foi
embora novamente. Ele é seu tio, meu filho?
-
Não. Minha Vó só teve meu pai. Obrigado Dona Vera.
-
Se precisar de alguma coisa, apesar de você ser invertido, meu filho, pode
contar comigo viu?
-
Invertido?
-
É o que comentam aqui, depois que você foi embora com aquele rapaz, o...
-
Invertido. Deixa para lá Dona Vera. Mesmo assim obrigado. Eu vou dar um jeito
na minha vida.
Quando
ela saiu, pela primeira vez chorei tudo o mais alto que podia. Deixei todo o
meu pranto sair de meu peito. Não me importei se estava ali na calçada, se
existiam ou não pessoas que passavam. Apenas coloquei para fora aquilo tudo que
precisava colocar. Ninguém veio pedir nada, apenas comentavam de longe. Eu era
o invertido, que fugiu com um homem e matou a avó de desgosto. Quem iria me
ajudar ou falar comigo? Eu tinha um punhado de facas no meu peito. Eu estava
ali jogado de novo naquele mundo, e não sabia nem ao certo por onde começar.
Sim,
respirei e levantei. Estava disposto a ser alguém e não um invertido. Eu era um
homem. E ninguém poderia me tirar este direito. Por mais que tentassem, por
mais que me batessem, por mais que me humilhassem, por mais que me difamassem,
que me odiassem, eu era um homem. Um homem do sexo masculino. Estava disposto a
fazer o meu pé de meia.
-
Madame, eu preciso de um lugar para ficar. Estou no olho da rua por causa
daqueles dois, como a senhora bem sabe.
-
Eu não posso fazer nada. Se faço por você tenho que fazer por todos daqui. Quer
me ver na falência?
-
E se me arranjasse mais clientes particulares?
-
Não é bem assim meu querido.
-
Como não? A Madame mesmo me disse.
-
Veja bem. Estamos lidando com negócios. E você ficou muito conhecido aqui na
cidade. Convenhamos, você sempre foi muito atraente e seu espetáculo é
grandioso tanto no palco como entre quatro paredes. Mas a concorrência aumentou
e, digamos assim, se aperfeiçoou... Consegue oferecer um serviço mais completo.
Me entende? Posso oferecer para você o palco novamente, ganhando o que ganhava,
talvez um pouco menos. Não posso pagar mais do que pagava. Agora, se você
estiver disposto a coisas mais completas, podemos entrar novamente para a
cabeça deste negócio. Tenho “feeling” para isso. Nós dois sabemos. Mas, como
você...
-
Aceito.
-
Olha, não esperava assim tão rapidamente.
-
Não tenho tempo Madame. A idade chega para todos. Para mim não vai ser assim
tão diferente. E não sou o Predador deste ramo? Todo Predador está no topo da
cadeia alimentar. Comigo não será o contrário.
-
É. Não me enganei com você. Fechamos negócio? Contrato de exclusividade...
Estava
me iludindo achando que seria tão fácil. No começo é bem complicado fingir
prazer para alguém que lhe paga por isso. Mais complicado ainda, ter tesão por todos
os tipos de pessoas que apareciam, ou pelas tantas coisas inusitadas que me
pediam.
Não
que me orgulhe disso, mas também não desprezo. Essa foi a minha vida, parte
dela. Significativamente, quase tudo que tenho como meus móveis, meu carro, meu
apartamento e o meu fundo de reserva, veio de lá. Não é uma coisa que se
esqueça tão facilmente.
Lembro
do primeiro homem com quem me deitei. Beirando aos 45 anos, sôfrego de vontade
de meu corpo. Queria adiantar o processo e tirou logo minha roupa. Conheceu meu
corpo com seus lábios. Aquilo para mim foi bem nojento, não tinha nenhum amor
envolvido, era uma questão comercial em jogo. Não cheguei a gozar. Nem vontade
disso eu tive. Mas era um bom ator. Era o topo da pirâmide daquele negócio.
No
auge tinha até mesmo uma secretária pessoal para anotar datas. Agenda sempre
cheia. E não ache que eu era um programa barato. Me deitava com homens da
elite, homens que tinham dinheiro, que voltavam para suas famílias, seus filhos
e esposas, depois das fajutas reuniões de trabalho no estabelecimento de Madame.
Era tudo muito discreto.
Não
quero entrar em detalhes sobre tudo o que eu fiz. Acho que isso não é uma boa
literatura, ou tenha alguma mensagem para passar. Mas sabe, aprendi que o meu
corpo não é um produto. Eu não sou um produto. Eu não estou a venda. Eu não preciso
provar nada a ninguém. Porque eu sei os meus limites, sei de onde vim, para
onde eu quero ir. E hoje espero apenas ir para algum lugar onde sou bem vindo,
onde sou querido e amado e não tolerado. Isso mudou a imagem que tinha sobre o
mundo e sobre mim mesmo. E aquilo tudo que estava passando, de certa forma,
moldou meu caráter de homem crescido. Um homem educado, com opiniões e gostos.
Um homem modelo como aqueles que aparecem na televisão, no cinema, na
literatura. Eu parei de ser o personagem secundário da minha vida.
E
não existe prazer que pague esta liberdade. Não existe prazer no mundo, em ser
dono de si mesmo. Se pudesse queria ser retratado apenas desta forma. Como o
homem que é dono de si, o homem que até pode parecer estranho, mas é dono de
si. É proprietário de seus sonhos, seus trabalhos e suas realizações.
Pode
parecer precário ás vezes, mas um dia vou deixar de ir até aquela academia. Eu
vou lá por um favor e não por uma obrigação. Eu tenho os meus problemas, mas é
recompensador resolver um pouco os problemas de outras pessoas. E fiz muito
isso na vida de companheiro de luxo, se posso mensurar aqueles serviços desta
forma.
Nunca
hesitei em transar com nenhum homem. Atores globais, pessoas importantes,
senadores e deputados. Tinha na minha lista de contatos, pessoas do primeiro
escalão de cada esfera governamental. Madame Kassandra ficava com boa
porcentagem dos lucros, mas mesmo assim era uma boa grana. O negócio foi
ficando tão bom que ampliei o mercado. Atendia três vezes por semana mulheres,
em sua grande maioria senhoras já bem acondicionadas nas diversas profissões, e
em alguns raros casos compareci até em despedidas de solteiro das filhas dos
mesmos empresários que já haviam dormido comigo. Um dia fraquejei, e não tinha como
não fraquejar, era Leonardo.
-
Eu não vou fazer isso.
-
Estou lhe pagando – ele disse.
-
Você tem a cara de pau de dizer uma coisa dessas?
-
Estou pagando para você me ouvir. Não ache que vou querer alguma coisa, assim
desse jeito.
-
Eu não tenho que ouvir nada que venha de você.
-
Por favor. Se ainda tiver algum respeito pelo que aconteceu...
-
Respeito cara? Não. Eu esperava este respeito quando você e aquela vagabunda
roubaram tudo que eu tinha, me deixaram na rua, sem ter para onde ir, com minha
avó morta, com tudo dando super certo... Nesta hora o seu respeito foi para
onde?
-
Eu me enganei com ela.
-
Vai me dizer! Eu só não lhe quebro a cara neste exato momento porque estamos
dentro do estabelecimento de Madame. E não quero criar confusão. Mas cara, o
que mais queria agora era lhe dar uns socos na boca. Mas daqueles que afundam a
pessoa para dentro e quebram muitos dentes...
-
Eu sei que mereço...
-
Ah como merece! Mas o que é seu está guardado. Eu não quero o seu dinheiro.
Pode ficar com ele. Eu não preciso de dinheiro. E não preciso ficar aqui. E não
preciso de você para nada na minha vida. As coisas mudam. E você mesmo disse
que não existia nós. Então, nós não vamos conversar. Porque não existe mais nós
dois nem em uma simples conversa.
-
Ela só queria me usar. Eu fui muito besta. E quero esclarecer as coisas com
você.
-
Você não precisa esclarecer nada. Não precisa dar nenhuma satisfação da sua
vida. Você não me deve nada.
-
Eu acreditei cegamente nela. Mas nunca lhe traí em nenhum momento.
-
Não? O que você fez com ela, me drogando, não conta como uma traição? Uma
traição de caráter?
-
Eu peço desculpas. Está complicado para mim. Ela também me roubou, estou sem
onde ir. E vim aqui ver se conseguia algo, mas Madame não quer me ver nem
pintado. Com minha família eu não posso contar. E...
-
Não precisa me dizer nada disso. Não tenho pena de você. Você acha que para mim
foi fácil? Eu fiquei na rua seu filha de uma puta. Eu invadi a casa da minha avó
para poder dormir e ter para onde voltar depois que usava essa porcaria de
corpo para sobreviver. Você... Escuta bem... Você me colocou no topo desta
cadeia. E aqui e agora eu estou lhe dizendo que este predador morreu para você,
para você e para todos. Porque ainda tenho princípios, ainda tenho meus sonhos.
E o que você fez não tem perdão.
-
Então não me perdoe. Eu sei que mereço isso tudo. Mas uma coisa que ninguém
nunca vai me tirar, é saber que você foi o meu primeiro homem. O meu primeiro
amor. E isso, mesmo que você queira, você não vai tirar de mim. Nem isso e
muito menos o amor que tenho por você. Você não sabe por que é tão cogitado?
Não fui eu que lhe coloquei no topo. Você se colocou aí. Por mais que eu queira
ir, você tem gravidade. E fico orbitando ao seu redor por que você é fascinante
e viciante. E por mais que queira não pensar, não sentir, eu não consigo...
Lembro
que Leo começou a chorar, e por mais estranho que pareça, eu me compadeci por
aquilo. Eu disse a ele que não daríamos mais certo, estava levando outra vida,
e nesta vida não tinha espaço para alguém como ele. Ficamos nisso, com
sentimentos não resolvidos por completo.
E
depois daquilo, nem mesmo meu “Kind of Blue, de Miles Davis” me deixava
confortável. Ouvi esse álbum com um cliente de Belo Horizonte. Não pense você
que apenas vendia meu corpo, eu tinha minha atenção toda voltada para o
ambiente em que estava, não é assim que age um predador? Perguntava sobre
aquilo tudo que não sabia, sem ser pidonho e intrometido, mas discreto e
interessado. Queria saber mais sobre aquele mundo. Ser criado por uma senhora,
de outra geração, me limitava um pouco as coisas. E para ser o melhor precisava
agir como um dos grandes. E me aperfeiçoei neste ramo, sabendo cozinhar, falar
dois idiomas, coisas de carros, literatura, moda e arte. Apesar disso, não era
feliz. Nem um pouco feliz. Do que adiantava esse punhado de coisas só para mim?
E não era carência, era falta de uma família concreta e não uma utópica, uma de
verdade que não habitasse os meus sonhos.
Passei
a ser um rascunho de uma foto de família em branco. Mas não gastei nenhum
centavo do que tinha com terapia. E achei que era a hora de tentar me acertar
com meus pais. Abrir o jogo sobre tudo aquilo que eu sempre tive guardado no
meu peito. Não foi uma boa ideia, óbvio.
Para
começo de conversa, achar eles foi complicado. Demandou um grande tempo e
recursos para quebrar todas as barreiras que eles impuseram para me afastar.
Quando dei por mim estava viajando para o Mato Grosso, sem saber ao certo o que
iria me aguardar. Só iria parar quando chegasse naquela casa no meio do nada,
cercada por imensas áreas de pastos verdes e cabeças de gado.
E
eu cheguei. Para surpresa dos meus pais. E acho que para a minha também. Nessa
época já tinha meu carro quitado. E as coisas, como Predador Sexual, já haviam
me dado a possibilidade de alguns dias de férias. Que férias mágicas! Não, foi
sarcasmo. Não deveria ter pisado naquele lugar.
-
Oi. Tem alguém aí? – Fui entrando pela varanda ampla que cercava a casa por
todos os lados.
-
Oi, tudo bem? O que o senhor deseja? – perguntou uma mulher uniformizada que só
poderia ser a empregada, minha mãe gostava de empregadas uniformizadas.
-
Gostaria de falar com o dono da casa, ele se encontra?
-
Bem... O senhor volta só pelo fim do dia, está tocando os bois. Pode ser com a
senhora?
-
Sim. Sem problemas.
-
Da parte de quem?
-
Da minha parte.
-
Sim, como o senhor se chama?
-
Va... Valdemiro – não iria me anunciar, se não minha mãe nem me receberia.
-
Com licença, um minutinho.
Foi
o minuto mais longo de minha vida. Então ela apareceu. Sempre haviam dito que
eu tinha puxado os genes dela. Uma mulher alta, morena e muito bem afeiçoada.
Lembrava dela cheia de jóias, com vestidos floridos e curtos, cabelos soltos e
sapatos altos, não havia mudado em nada.
-
Valentim? – disse ela surpresa.
-
Mãe. Eu...
-
O que você faz aqui?
-
Estava com saudades.
-
Você não tem vergonha nesta cara? Depois do que você fez com nossa família, nos
fazendo se mudar para este fim de mundo sem nada, de matar a sua avó, você
ainda vem aqui dizer que tem saudades?
-
Pensei que... Eu não matei minha vó.
-
Ah... Melhor ir embora daqui, antes que seu pai volte. Eu não quero ver mais
desgraça nesta família.
-
Mãe, eu preciso falar com vocês. Eu estou vivendo como um bicho. Tendo que
vender meu corpo como profissão, você acha isso certo?
-
Eu não quero saber das suas safadezas!
-
Eu não vou embora daqui até falar com meu pai. Não saio daqui. Vocês vão ter
que me ouvir!
-
Ouvir o quê? Você já deveria ter posto na sua cabeça que filho viado não entra
dentro de nossa casa. Quanto desgosto. Pensei que você iria se curar disso,
indo morar com a sua avó, afinal...
-
Se curar? Eu não sou doente. Você é louca?
-
Eu não quero falar com você. Você me dá nojo. Se quiser esperar por seu pai,
espere. Mas não dentro da minha casa. Lá fora. E por educação, que sei que lhe
dei, faz o favor de se retirar, tenho mais o que fazer da minha vida.
-
Eu espero. No meu carro. Que paguei com meu dinheiro. Com licença e passar bem,
minha senhora.
Fiquei
lá. Trancado no meu carro, sem ar condicionado, com um calor desgraçado, sem um
pingo de água e com fome, esperando o fim daquele dia para falar com meu... com
aquele senhor. Aquela senhora, que se dizia minha mãe, sempre foi uma cobra venenosa.
Casou cedo com um homem rico e não sabia o que era ser mãe de verdade.
Ele
chegou junto com a noite. Não havia reparado no meu carro estacionado. E de
longe observei ele entrar dentro de casa e permanecer lá por alguns minutos. E
posso dizer, com absoluta certeza, que poderiam ter sido os meus últimos
minutos neste mundo. Ele veio até mim, eu desci do carro de braços abertos,
esperando nem que fosse por um abraço. Mas ele veio com sua arma engatilhada,
pronto para me dar um tiro no peito. E pela primeira vez me senti a presa e não
o predador. Entendi que estava sozinho no mundo e teria que me virar, parar de
me queixar e agir um pouco mais.
-
Seu vagabundo, viado, filho de uma puta. O que quer ainda nesta casa? Não está
satisfeito com a quantidade de desgraça que você fez?
E
ele atirou para cima. E eu permaneci lá com meus braços abertos.
-
Não! Para com isso. Vai embora daqui, se tem amor a sua vida – ouvi de longe
aquela senhora.
-
Sua aberração! Você é um merda, você não é normal, aberraçãoooooo...
Aquela
voz foi ficando para trás. Assim como aquele lugar e aquela estrada. Mas em
mim, essas palavras ainda machucam. Meu pai matou alguém aquele dia. O Predador
não existiu nunca mais.
-
Eu não sou uma aberração! Só quero um abraço, pai.
-
Valentim? Tudo bem. Você está medicado, meu amor. Dorme. Tenho que me desculpar
com você. Eu te amo. Dorme. Você não é uma aberração – disse Valkíria do lado
de minha cama no hospital.
-
Não mesmo Valentim.
Valkíria
olhou para a porta do quarto e se deparou com Leonardo.
-
Você?
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