Velha
é a Máquina! Eu sou o Amor.
Tantas
e tantas coisas aconteceram na minha ausência. Estava na hora de voltar a participar
mais ativamente desta estória. Sempre cumpri muito bem o papel de fofoqueira. Pois
a minha fofoca é das grandes.
Neste
período de oito meses, criei muitos sentimentos por Valkíria, Júnior, Valentim
e Leo. E me interesso cada vez mais por suas histórias e experiências pessoais
de vida. Um interesse literário, para ficar mais esclarecido. Minha máquina de
escrever acumulou muito pó. Resolvi tirar a prova daquilo tudo que havia
escrito. Surpreendentemente porque um velho amigo da infância decidiu ler e
revisar minhas páginas. Agora quer editar para publicação!
Quando
imaginaria que nesta altura da minha vida, meu primeiro romance seria
publicado? Eu? Apenas mais uma intrometida, que acabou contando a estória de
tudo aquilo que observava da própria sacada, no condomínio, ouvindo pelas
paredes.
Toda
esta narrativa acabou me deixando cheia de vida, retribuindo amor, mudando a
minha própria imagem. Ninguém mais fala de mim pelos corredores, ou muda de
assunto quando passo com minhas sacolas de compras. Passei a me ocupar com meus
afazeres, minhas vontades e desejos. Nunca é tarde para mudar, certo?
Continuo
acordando cedo, passando meu café e fazendo algo para comer. Depois disso vou
até a feira, compro os melhores legumes, algumas frutas da época e tudo que meu
dinheiro consegue comprar. Um aposentado neste país é tão miserável que chega a
dar pena. E esse pouco que ganho da aposentadoria do meu falecido marido,
oficial do exército, consegue manter minhas contas em dia.
Não
sei se isto é tão relevante para o contexto. Mas, não posso mentir sobre alguns
fatos ficcionais, tais como a minha reação quando soube que meu filho era gay,
ou quando tive que de imediato ajudar Valkíria na morte do seu falecido pai.
Não era uma mulher tão prestativa.
E
me diga, que mãe quer ver o seu filho sofrer? Toda mãe quer apenas ver seu
filho feliz. E com meu Carlinhos, não foi assim tão diferente. A primeira
impressão que tive era que ele iria apanhar nas ruas, ser destratado, usar
drogas, se meter com coisas que não deveria. E estava errada, completamente
equivocada sobre tudo isso. Ele continuou sendo meu filho, com todas suas manias
e seus jeitos, só que muito mais confiante e realizado. Com alegria nos olhos,
emoldurando sua face de uma forma vibrante.
E,
dentro daqueles dias que se passaram, parecia que a ordem das coisas estava
novamente restabelecida. Valkíria recebeu uma linda carta de seu pai, pedindo
perdão pelas coisas cometidas e esclarecendo o motivo dos seus problemas de
convivência e suicídio. Ele havia organizado toda a vida dos filhos antes de
partir, separando os bens de forma igualitária, emancipando Júnior. Valkíria
decidiu seguir o conselho de seu pai (que se mostrou atento aos gostos dela, surpreendendo-a
depois de morto) e começou a cursar Design. Valentim, que abandonou a academia,
começou a cursar Administração, e com a fortuna que herdou dos pais (ambos
morreram em um acidente com um bimotor, quando estavam viajando para Cuiabá)
devolveu o dinheiro de Leonardo (dado por Madame Kassandra na época), e se
colocou na vida, reformando uma linda casa para ir morar sozinho com Valkíria.
Meu
filho Carlos e o Júnior estão namorando sério. Vivem sempre cheio de seus
problemas, mas mesmo assim não se largam. Meu filho passou em Engenharia
Mecânica, e quando não está com Júnior está sobre seus cálculos e pilhas de
livros. Júnior decidiu fazer Cinema, e não é que tem talento para isso? Estava me
mostrando a ideia de um documentário, sobre como o amor que é retratado no
cinema, influência as inúmeras gerações de formas diferenciadas.
Leonardo
comprou o apartamento de Valentim, com toda a decoração moderna e minimalista. Sempre
que sobra tempo das suas aulas de arte, faz uma mega sessão de cinema para
todos, com muita pipoca, bebida, comida japonesa e coisas do gênero. É também um
jovem solteiro, apelidado por todos como o lobo solitário, ficando horas dos
finais de semana pintando quadros e mais quadros, para a exposição da escola no
período de férias. É um artista plástico invejável. Uma ótima terapia, segundo
ele. Sempre sobe até meu apartamento e tomamos um cafezinho, conversando sobre
as coisas do dia a dia.
-
Com licença, Dona Lúcia! Estou entrando – disse Valkíria abrindo a porta da
sala, e indo em minha direção na sacada.
-
Vai entrando Valkíria, você já é de casa! Cadê Valentim?
-
Está no Leo. Já sobe para lhe ver também. O que a senhora faz aqui, pegando
sol? Esta hora o sol ainda é muito forte, Dona Lúcia!
-
Estava batendo em umas teclas...
-
Vou lhe comprar um computador de presente. Aí você abandona esta máquina de
escrever velha! Escrevendo sobre o quê?
-
Vou passar um cafezinho e daí conversamos sobre isso. Porque não queria publicar
meu livro sem falar com todos vocês antes...
-
Falar com nós todos? Como assim Dona Lúcia? Nós todos quem?
-
Com você, com Valentim, com o Júnior e com o Leo... Mas vamos ali na cozinha
que eu explico melhor! O que te traz aqui?
-
Resolvi passar ver se a senhora precisava de alguma coisa ou se estava bem. Sabe
que prezo muito a sua generosidade e sua amizade!
A
máquina parecia não parar de escrever sozinha.
-
Sim querida, tenho muito gosto das coisas boas que você está colhendo. Você
sempre mereceu. Já se acostumou com a ideia de ter um jardim em casa, depois da
reforma?
-
É muito bom! Espaço é o que mais tem na casa. E eu adoro o contato com a
natureza, ainda mais nesta cidade toda cinza e pavimentada. Será meu paraíso
particular. E Valentim está adorando o resultado do nosso recanto... Nada mudou
Dona Lúcia, ainda somos os mesmos!
-
E Valentim, como vai? – perguntei lhe oferecendo uma fatia de bolo, enquanto a
água para o café não fervia.
-
Está bem. Continua fazendo meu almoço, como um verdadeiro dono de casa – abriu
um sorriso de orelha a orelha – Cursando a faculdade mas tem as mesmas
indecisões da vida, sabe? Está pensando em cursar uma especialização em
comunicação e marketing...
-
Estudar nunca é demais, né Valkíria?
-
Não mesmo Dona Lúcia!
-
A água ferveu. Vou ir passar um café para nós duas.
Deixei
Valkíria no sofá. Com a reforma da minha cozinha conseguia deixar tudo
integrado, ampliando minha casa e a deixando mais ventilada (ideia do Leo, que
sempre foi muito bom com esse negócio de decoração).
-
Chegou em tempo de pegar um café quentinho – disse para Valentim, que acabava
de entrar no meu apartamento.
-
Como a senhora está Dona Lúcia, bem?
-
Estou muito bem.
-
Posso pegar um pedaço do seu bolo?
-
Claro, sinta-se a vontade.
-
Sobre o que a senhora queria falar antes? Dona Lúcia vai publicar um livro
Valentim...
-
Que legal Dona Lúcia! É sobre o quê?
-
É sobre vocês. E queria que soubessem disso, antes de eu assinar qualquer
contrato para publicação. O assunto todo do livro são vocês...
-
Nós? O que temos de especial para virarmos uma estória? – perguntou Valentim.
-
O amor. Esse amor que anda em falta nos dias de hoje. Mas, não poderia fazer
isso sem a versão de vocês dos fatos. Eu usei da minha licença poética, dada
aos escritores por certo mérito, mas preciso que aprovem o conteúdo do livro.
Não quero fazer nada sem o consentimento de todos. Leo já me cedeu autorização,
leu a estória e ficou feliz. Introduziu algumas palavras, onde faltava alguma
opinião mais pessoal...
-
Não sei o que lhe dizer Dona Lúcia – Valkíria se animava no sofá – Nunca
esperei virar enredo e personagem de um romance. Da minha parte quero ler este
livro depois de impresso e autografado. Acho que não devo temer a forma que fui
retratada pela senhora... Tem a minha autorização.
-
Quanto a mim – disse Valentim – Gostaria de dar a minha opinião sobre mim
mesmo. Se a senhora não se importar, é claro!
-
Não me importo, lógico que não me importo. Eu sempre me intrometi muito na vida
de todos, ouvindo pelas paredes para esparramar fofocas. Quero que esta estória
represente o quanto vocês são bons e humanos. Quero falar sobre o amor, sobre a
tristeza, o perdão e a felicidade...
-
Se puder levar para ler. Lhe mando ainda nesta semana minhas observações sobre
eu mesmo... O que é bem estranho...
-
Júnior me mandará uma parte também. Eu só posso agradecer de todas as formas.
Eu amo muito todos vocês. Eu amo muito vocês – não me contive e acabei me
emocionando, todos eles sempre mexeram muito comigo.
-
Nós também lhe amamos Dona Lúcia – disse Valkíria me abraçando entre lágrimas.
E
me mandaram. Naquela mesma semana fiz todas as alterações necessárias e passei
a ser a primeira escritora da família. Uma senhora de 60 anos que nunca
desistiu de seus sonhos. Fazer fofoca não é crime. Crime mesmo é não se amar, é
conceber julgamentos errôneos sobre a realidade que não lhe convém. Quem sabe
não comece a escrever meu próximo livro agora? Mas no computador e não nesta
máquina de escrever velha. Também sou velha para isso? Velha é a máquina! Eu
sou o amor.
Mas
não se assuste. A estória não vai acabar desta forma! De longe, esse nem se
parece com o fim. Mas escrever não é fazer fofoca?
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