Estava morto dentro de um cômodo no
segundo andar, pois a sujeira apenas trocava de rosto. Abaixei o porta-retratos
na cabeceira, que me lembrava de toda a violência. Em uma fileira de dez em dez
eram empurrados contra a parede, baixadas as calças e enrabados com grosseria
pelas costas, tomando no meio do cu. Um suor excessivo, uma boca salivante, dilacerando
e rasgando as páginas do meu diário imaginário.
– Amor no mundo virou mito - Estava morto e
estirado sobre a cama. Com carteiras de cigarro e um punhado de remédios que não
me faziam mais dormir. Não queria descer até a festa, queria descer esgoto
abaixo, junto com o cheiro forte de urina que vinha da minha privada.
Misticos e exóticos, eles chegariam trajados
com suas melhores roupas, mergulhando dentro dos panos um punhado de merda
líquida, como uma diarreia de mentiras. Eu vestiria minha fantasia habitual,
tendo sobre os meus braços cansados o medo de escurecer incertezas. Não
deixaria que as luzes se apagassem, porque no escuro não decifrava a oração.
No claro, um punhado das minhas
fotografias eram apenas objetos de decoração, quadros mortos de imagens mentais
que eu já tinha sido. Lá em baixo entravam os arranjos de flores, pela porta
frontal, enquanto na cozinha o serviço de Buffet impregnava tudo com bosta da
melhor qualidade. Eu estava morto dentro de um cômodo sem janela no segundo
andar.
Cuspindo na minha boca alguém veio e disse
“levanta, chega de drama”. Me pegou pelos cabelos, me jogou no chão imobilizando
o meu corpo. Minha melhor amiga era a empatia, que fazia sobre os meus dias de
cão, escolher sofrer e não partir. Temendo morrer me escondi atrás da minha
camiseta social preta com brilho, trajando as palavras que nunca me fizeram
falta mas faltavam. Aos poucos alguém foi me silenciando.
Então desci a escada, valsando com os
dedos a minha decepção por estar vivo, trajando apenas um pouco da minha
vergonha na cara e a responsabilidade de ser um bom anfitrião. Naquela festa de
máscaras estava debutando, apresentando a sociedade a bicha toda montada que
nunca fui, a “Viada Lírica, Melodramática e Louca”. E dançando como um
sonâmbulo, travava meu queixo em um alter ego ruim.
Andando pelo salão estava sendo observado.
Começavam a chegar os mascarados, e eu cumprimentava
um por um, dando sempre minha mão direita, com um sorriso todo esquerdo no rosto.
Alguns vinham até meu ouvido dizer:
- Posso cavalgar sobre você ereto?
Alguns mais complacentes pediam com um por
favor ou obrigado. Alguns só queriam que eu me sentasse e repousasse em tudo
que fosse vertical. E eram postos de dez em dez, marcados como um rebanho,
colocados para dormir como nenéns que precisavam mamar.
Ele então chegou até mim sem verso rimado,
sem máscara alguma, dizendo “meu nome é Solidão”. Inflado em meu ego enchi mais
um copo, subi as escadas e pedi que viesse comigo até o quarto. Ele exitou
entre as incertezas e fez seu silêncio. O silêncio mortal que se faz quando se
tem medo das consequências.
Me senti salvo. E os olhos do meu salvador
eram duas bolas graúdas e redondas, sobre um emaranhado de samambaias escuras,
que ele tinha na cabeça. A categoria homem o fazia não ser a mulher que era por
dentro, crucificado sobre o drama que a vida lhe deu, a parábola e o evangelho
de um homem solitário. Não caber dentro de nada, mas ser dois universos em um. Então
falei bem alto:
- Vem!
Estava trabalhando minha coesão
gramatical, e minha total falta de desleixo. Mal redigindo meus pensamentos, não
percebi que um demônio o apavorava. Ele vomitou na sala de estar e se trancou
no banheiro. Desci até ele entendendo todo o fato.
- O mundo é sujo mas eu não sou! – tentei
argumentar.
Me jogavam frequentemente sobre as ruínas
do que fui. Então acabei ruindo sobre ele a minha porcaria toda. Ele salvador,
vomitando uma miséria humana de um estupro, qualificado como a maior de todas
as violências e agressões. O homem que ele era, estava atrás de um par de
óculos. Eu não tinha nada mais a esconder, desci da “Viada” e passei a ser um
menino. Chorei alto chupando o meu dedão, enquanto usava o do meio, para
ofender o homem de roupas escuras, que se masturbava com toda a situação.
Todas as portas estavam trancadas. Eu deveria
voltar para dentro da minha concha, o deixando em paz. Era paz que faltava dentro
daquela casa repleta de sujeira e imundice. Ele representava o nascimento de
uma Vênus moderna em mim. Toda vez que me afastava em um mar de tempestades,
enfrentava-o de olhos parados com minha jangada de cordas e galhos.
Todas as pessoas com que me deitei eram
estúpidas, socavam e metiam ou queriam que eu metesse como animais que são. Estava
largando as redes sociais e passando por um processo de humanização constante,
onde tudo sem efeito parecia ser melhor e verdadeiro.
Então o deixei no banheiro. Precisava
pensar e colocar a minha cabeça no lugar. Não estava certo toda a conjuntura
destes fatos. Deveria ter prestado atenção ao primeiro sinal quando queimou a
luz do banheiro, e quando a primeira lágrima caiu na folha de papel.
Voltei para meu quarto sem janelas. Me
deixei ficar ao chão enquanto trabalhavam sobre meu corpo. Eram dezenas de
pessoas o rasgando e o mordendo, com brutalidade e maestria. Aos poucos a dor
não era mais sentida, o horror não banalizado, a vida toda colorida passou a
ser um filme preto e branco censurado. Flores aos bancos, velas aos santos, pão
aos injustiçados. Beijava um mundo com meus olhos, sem o traje da noite
anterior, pois ali estava também eu, estuprado e despido sobre meu próprio peito,
que se inflava e esvaziava a duzentos por hora em um segundo, arfando sobre minha
existência a vida que não queria mais ter.
O SENHOR DA MADRUGADA. VINICIUS OSTERER.
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