Ela retornava para casa toda
ensanguentada, com seu filho nos braços. Ele apenas queria servir ao seu Deus,
com um único propósito. Orava de joelhos todas as quartas, enquanto ela
distribuía refeições aos necessitados, de olhares duros, cabelos desgrenhados e
dentes por cair. Beirava agora a insanidade das ruas, admitindo para si mesma a
não existência de Deus e nem do sujeito homem.
Injustiçada ela carregava seu filho nos
braços já sabendo, que a terra devoraria aquela carcaça fria de bicho duro e
morto. O garoto exalava um cheiro de morte nova, misturado com o fedor das
lixeiras da cidade, dos animais atropelados e a infestação de fumaça, que
recobria com uma camada espessa o horizonte acrescido de cinza por todo lado.
Cinza estava na moda, na capa da revista, na cor da estação.
Intimidada ela parava, observada por um
punhado de vozes em diferentes categorias e graus de olhos. Como ela chegou lá?
Pergunte ao padre e aos vizinhos. Como ele foi morrer assim? O propósito sempre
foi este.
Era um dia como outro qualquer, era um menino
de olhar gelado e cabelo louro qualquer, ele ia para uma igreja qualquer. E
qualquer coisa que não esteja ligada a este fato é uma coisa qualquer. Se sua mãe
o idolatrava? Preferia o milagre dos santos, pendurados pelas paredes da sala.
- Tchau Mamãe.
“O que esse menino tem hoje?” ela pensou.
Pensou porque era obrigada a pensar. Pensou porque não poderia negligenciar
seus pensamentos, e eles vinham na sequência da sua solidão, de uma mãe
abandonada com um filho para criar, com a louça da pia para lavar, com a comida
da mesa para servir. E seguiu, fechando a porta da sala de estar, com o celular
na bolsa desligado, um coração apertado dizendo “corre atrás do seu filho!” O
que ele fazia tanto naquela igreja?
O estranho é que o menino nunca teve
aquele olhar. O olhar silenciado, vago e sem presunção. Era como não olhar mais
para os redondos olhos de seu garoto de nove anos. O garoto sem década de vida,
que somava aos seus sonhos as vivacidades e cores de uma infância. Era como não
olhar mais para o recém-nascido, que agora ia todas as quartas feiras rezar
numa linguagem morta, para alguém que já estava morto, mas ainda redimia todo o
pecado.
Ele entrava na igreja como uma sentença ou
final de frase. Era um cale-se para sempre, condenação de morte, cadeira
elétrica. “O que esse menino faz aqui? E hoje?” Lembrou-se que não era quarta,
que não era sua roupa de sair, nem seu calçado de andar na rua. E lembrou-se
que era uma mulher separada, desempregada, sem fé alguma na sua própria
salvação. Curvou a cabeça, olhando o caos. Tudo aquilo que lhe cercava estava
perdido.
Era bandido atrás de bandido, mordendo o
próprio rabo de uma cobra que não tem fim, sempre dando um início e nunca dando
o próximo passo. Então correu, correu o quanto pode, desprendendo os pés do
chão e movendo seus calcanhares até a porta que se fechava. Dentro de si teria
um ventre com seu bendito fruto de olhos amargos e desnorteados. Dentro de si
teria apenas medo, de se enterrar na sua vida vazia.
O padre o esperava, como quem espera
ajoelhado o milagre da eucaristia de Cristo. Sem blasfêmias ela fez o sinal da
cruz, vigiando a certa distância toda cena. Seu filho conversava com o padre,
como uma pedra fria, um objeto sem coração. Logo o menino que era tão
sorridente. O menino que brincava como outro menino qualquer. Não era o mesmo
que sorria aos quatro meses com qualquer baboseira que lhe faziam, quando
escondiam o rosto e numa explosão de surpresa, mostravam uma cara toda
desajeitada. O que acontecia naquela igreja? O porquê do olhar de gelo?
Um retrato doentio chegou sobre os seus
olhos. Como a noite vem vindo e dando os seus próprios sinais, escurecendo o
céu e ligando as luzes da cidade. O menino desfivelava a cinta da calça
protagonizando o ato, com seus olhos vidrados e pouca altura de matéria. Um
cinturão de estrelas rodeavam seus dedos, enquanto masturbava o representante
de Deus sobre a Terra. Então ele disse:
- Coloca a boca.
O menino desajeitado e sem fôlego,
colocou. Não era como chupar laranjas, era uma fruta mais amarga com gosto de
nojo e vômito. Era como engolir uma chaminé de fábrica ou como comer e
despedaçar cigarros com os dentes. Um vírus que nasce, alguém morrendo de fome,
levando um tiro a queima roupa, subindo para o espaço, decaindo na miséria, e
os olhos dela, mãe, que sombreavam com retinas tortas, com um gosto de vitamina
de Hepatite na boca, sem saber a quem recorrer se estremecendo e gritando:
- Largue meu filho seu pervertido, filho
de uma puta!
A igreja se tornou um caos e um abismo. O
mesmo caos que rondava todos lá de fora estava instalado nos bancos da frente,
de joelhos rezando. Sobre seus pés os precipícios morais todos abertos, e as
damas virginais que choravam enquanto sentiam o calor do fogo de um inferno
feroz, cheio de vozes anêmicas e sufocadas. Das paredes exalava-se um fedor,
impregnado de tinta à óleo, cenas bíblicas sobre a vida e obra de Cristo. Das
prateleiras, desciam com seus mantos coloridos os santos, cheios de garras, em
procissão e vigília. Todas as figuras religiosas se revoltavam contra ela,
formando uma barreira cada vez mais espessa entre seu corpo e seu filho. Saiu
gritando assustada, não conseguindo esquecer aquelas coisas quaisquer olhando para
ela na vertical.
BUMMM. Caída sobre o asfalto.
“O reino dos céus é para os justos, de bom
coração. Deus quer ao seu lado quem é bom. Na presença dele todo o mal cai por
terra. Ele separa a videira seca da produtiva, semeia em campos considerados
inférteis, concebe por sua graça o inconcebível, doma leões e amança todas as
feras. Faz brotar água no meio do deserto, salva quem é seu na hora da agonia.
Nele tudo é uno e partilha. É presente, passado e o futuro. Com seu filho e o
coro dos anjos ele é justiça. E sobre ele estão todas as constelações de
estrelas. Abaixo dele estão todos os universos. Sobre seus pés estão as
serpentes e demônios. Com uma palavra ele liberta todo o pecado”.
- A senhora está bem? A senhora está bem?
Ela foi atropelada....
- Meu filhoooo! – Em um mundo de poucas
palavras, ela era um grito. Levantava do chão e voltava a igreja. Os seus
gemidos eram de pavor, e lá fora questionam se ela era louca. Lá dentro no
fundo de tudo, seu filho ainda estava com o mesmo olhar de gelo.
Batendo o coração como quem bate uma
punheta, a mãe grudou seus sapatos sobre o chão, impedida de mover os pés com
um punhado de esperma na boca. Seria força divina? Os gritos eram abafados pelo
tempo lá de fora que não parava.
Personificada como o olho de Hórus, ela podia
ver tudo imóvel. Não eram as mesmas imagens dos quadros decorativos da sala de
estar. E se lá fora questionavam sua sanidade, passava também a se questionar,
seria um daqueles sonhos que não conseguimos acordar mesmo tentando? Mas ele é o
seu filho. O belo menino de louros cabelos, saído de suas entranhas. Ela não
iria perdê-lo para Deus.
E indo para fora no meio da zombaria,
correndo com todas as suas forças, pavorosamente gritando com um olhar duro,
cabelos desgrenhados e dentes por cair:
- Me ajudem! Por favor, me ajudem! Meu
filho está sendo estuprado!
E caída na sua humilhação só ouvia os
risos das pessoas que não ligavam para suas afirmações. Era o mesmo que dizer
que “o fim está próximo” banalizada como o esgoto humano que acabava de aceitar
ser.
Com a pedra sólida de fundação ela foi
arrastada por sua demência, não foi buscar por um pedaço de pão, mas por mais
da mesma ultra violência. Forçada e impedida de dar grandes passos, corrompida
pelos medos vitais que a consumiam, colocou força onde não conseguia mais
colocar nenhuma fé. Arremessou uma pedra com exatidão e precisão que nunca teve.
Doía dentro do seu coração com aperto.
Doía mais tê-lo afastado de seu corpo sinuoso de mãe. Era a vida que seus olhos
pressentiam ardentemente, como fogo que cai do céu numa tempestade severa de
raios. Era uma medíocre em acreditar na fé, ajoelhar e sentir que um milagre
invadisse seu peito. Rolando pelo chão a pedra voltava para seus pés cheia de
sangue, e no chão não haviam mais precipícios, mas um bicho endurecido sem
vida. O que ela fez? Seu filho está morto. Onde está aquele padre? Só lhe
restou a pedra.
- Oh meu senhor, meu filho está morto! Meu
filho está morto! – ela arrastava como podia o mesmo filho de olhar gelado. Talvez
vivesse morto por dentro sem ninguém notar.
Os vizinhos assustados iam para as
janelas. “O que essa louca fez?”, “Chamem a polícia. Ela matou o filho!” E em
prantos retornava com ele para casa. Com sangue nas mãos não era capaz de olhar
para o céu.
- Então você tem seus protegidos não é
mesmo Deus?
Enfim quando olhou para cima já era tarde,
seu filho estava frio como o olhar de antes. Desperta o relógio, é hora de acordar.
A freira atordoada com o pesadelo levanta para mais um dia no convento, e
termina de rezar suas Ave-Marias antes de lavar o rosto e colocar seu hábito
religioso. Seria um dia penoso para distribuir caridades. Este era o propósito
divino.
O SENHOR DA MADRUGADA, Vinicius Osterer.