I.
Diziam as más línguas que eu era filho de chocadeira e bastardo. Apesar
de varão, não aparentava lá aquelas coisas com o meu pai, um homem exilado no
meio das plantações, com suas premiações esportivas tão tolas. Como disputar
com alguém que veio antes de mim, sem um gene misturado, bem mais interessado e
interessante? Eu havia sido feito para a derrota.
A mãe que eu nem cheguei a conhecer (e que todos diziam ser a pior
espécie), uma dessas vagabundas de estrada sem sorte, morreu antes de ver o meu
quarto azul melancolia, pintado com as cores daquele homem-animal melhor do que
eu, que nunca havia sido um derrotado e acabava tudo com honrarias e êxitos.
Com um punhado de discos de vinil sobre plumas e paetês, trancado no meu
mundo, sempre escolhia ouvir o “Alladin Sane” do David Bowie. Talvez pelo nome
sugerir algo similar a “uma senhora insana – a lady insane”, e gostava de me
caracterizar e pensar como uma mulher desvairada e insana.
Isso me amaldiçoou a não cruzar os corredores sociais quando vinham
visitas em nossa casa. Hoje, por exemplo. Meu excesso de brilho nos olhos,
unhas pintadas e vestido até as canelas, quebravam com a rudeza e hospitalidade
daquele homem-pai tão limpo, de barba feita, cabelo cortado e feição de sujeito
boçal. Nariz alongado, com um olhar sempre fechado, ferido na pele pelos
dizeres e ditados de seus pais, e dos pais dos seus pais, todos ancestrais a
invenção do fogo.
Fui batizado e criado como um menino. Mas, escondido fazia bonecas de
palha no celeiro, usava os lençóis como capas imaginárias, envolvendo a minha
pele como a seda envolve o corpo de qualquer mulher. Amoras silvestres pintavam
minha boca, os batons naturais que a vida me dava ali mesmo no jardim, sem
precisar ir até a cidade e encarar os olhos amedrontados daqueles homens e
mulheres que não sabiam se divertir. Como saberiam? Mal sabiam quem eles eram,
aonde eles estavam, para onde eles iriam. Eu sabia, sempre soube e saberei.
Estava atrelado sobre a minha pele a sensação de subir sobre um Scarpin
vermelho de bico fino, a única herança da mulher que habitava uma lembrança
criada, e que todos em casa chamavam de minha mãe. Minha mãe de verdade, nos
meus devaneios, viria dos céus com a minha família, e isto já era um fato
acertado pelas pendências e dívidas do carma reverso.
- Abaixe o volume deste rádio, não consigo conversar na sala! – disse
meu pai, escancarando a porta do meu quarto aos berros.
- Não posso descer, nem sair, nem ouvir música... Que horas é o meu
banho de sol, senhor carcereiro?
- Já viu que horas são?
- No meio do nada onde vivemos, nem os relógios trabalham para o tempo,
homem. Que diferença vai fazer? O barulho só vai incomodar os mosquitos,
corujas e sapos. Ou vai me dizer o contrário disso tudo, você que sempre foi
tão certo?
- Este barulho me incomoda.
- Não é o barulho, sou eu. E você bem sabe disso. Eu existir é o mesmo
que você não sustentar a imagem intacta que tem. E tenho cada dia mais gosto de
representar este papel na sua vida...
- Escute aqui garoto, se continuar me desacatando, pegue suas coisas e
vá embora. Não preciso sustentar alguém como ti no mundo. Minha obrigação já
foi feita, é um homem crescido e detentor das próprias escolhas. Poderia
casar-se com uma mulher que fosse honesta e submissa, ter filhos batizados aqui
perto na nossa igreja, erguer com o seu trabalho a terra de todo dia, mas..
- Para quem tudo isso? Erguer o que com o meu trabalho? Vender as
migalhas do que eu sou, isso sim, para aqueles cada vez mais enricados com o excesso
de suor e labuta alheia.
- Desliga a porcaria do rádio e por hoje eu quero silêncio...
Eu não queria o silêncio, queria o ruído da minha voz entrando e saindo
pelos ouvidos dele, dizendo em bom e alto som: “sou viado”. Tombei sobre a
cama, empestilhado com ideias ruins, calado mais por desânimo do que por
imposição de ordens. O céu anêmico transbordava de estrelas.
No mais alto, conspiravam todos os deuses, sobre a pior das traições da
espécie. Via-se isso nos rastros luminosos das estrelas cadentes que passavam
de segundo em segundo, queimando de leste a oeste todo o céu. Não parei para
observar atrás de uma janela encardida e sem cortina, fui até o campo que nesta
época do ano estava limpo e claro, como a minha alma quando expurgava as
indelicadezas e parcimônias de afetos paternos.
Corri com os meus sapatos impregnados com terra e orvalho, abri uma
garrafa de vinho e contemplei o espetáculo: eram pontos e mais pontos em expansão,
ligando planetas e estrelas que não sabiam de sua própria existência. Deveria
ser agradável brilhar sem nenhum motivo, sem saber que se existe.
Caleidoscópio mental de flores para todos os mortos e afeminados. Bati com
a cabeça em um reflexo sedutor e deitei na grama. Um objeto esférico de fogo me
paralisou pelo medo. Como um rastro serpentuoso deixado na escuridão, uma forma
sem métrica me enchia de chuva lodosa, um líquido viscoso e escuro, mais denso
que meu sangue. Entrava sobre mim e me sentia uma ratazana imunda, coberto de
cogumelos em um tronco partido e rachado ao meio. Os trovões e relâmpagos do
céu encenavam um show mitológico de horror. Escurecia como as nuvens de vapor
mais gasosas do que a fumaça que subia do meu corpo quente de jovem, caído
sobre um punhado de nada. Eram luzes que vinham de um ponto cada vez menos
distante sobre minha pele, dando o sentimento da aspereza e acidez na boca, corroendo
meus braços e subindo até a linha do pescoço, fazendo brilhar no meu polegar
esquerdo a palavra “D.Err(axo)ta!2”.
Tornava-me um humano fluído e sem gênero. Tornava-me alguém desacordadx e abandonadx.
[...]
- Acorde menino! Se seu pai lhe pega aqui fora com esta garrafa de vinho
vazia, só Deus sabe o que acontece... – disse Orion, oxa empregadx da família, que cuidava de mim desde
pequenx.
- Que horas são? Que dor de cabeça horrível. Devo ter me embriagado
ontem a noite... Tive um sonho estranho.
- E que sotaque é este? Por que está falando desta forma, garoto?
- Sotaque? Sou oxa mesmx
garotx de sempre! Com menos dignidade, dormindo bêbadx fora de casa, mas...
Quem nunca?
Levantei como uma fada. Uma fada estereotipada que não andava, flutuava.
E estava flutuando dentro do caminho da minha luxúria e lascividade. Abrindo
meu manto florido e molhado, entre a negação de beber mais alguns copos de
vodca com comprimidos, e a vontade de vomitar até as tripas no sofá que meu pai
sempre sentava na sala.
Entrar naquele sepulcro que se chamava lar, não estavam nos meus planos
imediatos. Mas, precisava de uma xícara de chá sem tempestades e catarses, um
chá quente de sumiço e ressaca moral. Precisava da minha cama e do meu aparato
de elemento fixo, meus discos e plumas, meus cigarros e minha caixinha de joias
falsificadas. O rádio estava ligado na cozinha, fui até lá para desligá-lo.
“As estranhas aparições foram
registradas por telespectadores em todo o país. O presidente anunciou que serão
tomadas medidas de controle e prevenção, para determinar as possíveis causas
das luzes misteriosas e sinais não codificados em plantações. Há relatos de
desaparecidos e mortes misteriosas por todos os lados...”
Orion materializava-se numa frequência estranha a mim, nos lugares que
precisava que elx estivesse. Não contive o velho hábito de entrar nos lugares
sem ser chamadx.
- Tudo está em ordem, vê se desliga este rádio Orion.
- Fiz um chá para você, não quero o ver doente.
- Vou tomar esta xícara e deitar. Se alguém pedir por mim estou
desaparecidx como esse punhado de gente com sorte...
- Endoidou de vez. Agora fala o que ninguém entende!
Subi e dormi por dezesseis horas ininterruptas.
II.
Chovia lá fora e eu não conseguia mais sonhar pelo peso da minha própria
consciência. Desci até a cozinha, roubando as flores mortas de um copo sobre a
pia. Meu polegar ardia e só então percebi que não havia sido um sonho. Lá
estava a D.Err(axo)ta!2.
Habitualmente eu enfrentava a chuva, para colocar a cabeça em ordem, não
seria aquela tempestade que me deixaria ali dentro. Fui lá para fora.
- O que é aquilo?
Saí da estrada e corri em direção as luzes. Haviam murmúrios de vozes
estranhas por toda parte. Talvez estivessem apenas na minha cabeça. Era como um
chamado. Quanto mais perto daquele clarão, mais minha pele ardia. Até que a
tempestade cessou, e fiquei cara a cara com uma sombra que vinha em minha
direção. Pensei que fosse algum efeito da vodca com os calmantes habituais.
- Mãos ao alto, é uma abdução!
Tentava correr para me salvar daquelx Drácula de olhos delineados.
Quando olhei para trás, acabei sendo engolidx por um DRAG(ão) que veio da lua.
Rodopiava dentro do espaço e tempo. Esticava e diminuía como em um
buraco de “Darko”. Não estava mais no Kansas. Aquilo me parecia um tribunal,
disperso no infinito não sólido.
III.
Sentadxs da esquerda para a direita, em um formato circular, estavam oxa.s deusxs ancestrais e seus signos, observando
atentamente o diálogo que se travava entre o sol e a lua na abóbada celeste:
- Você tem o direito de se sentir prejudicx! – exclamou a Lua – Não
desvie o seu olhar...
- Não desviarei meu olhar porque já não temo o mal que me causastes!
Como direi e pretendo elucidar para vossxs senhorxs! – oxa Sol preencheu o lugar com seus raios e sua voz,
ressoando pelos limites de expansão de toda matéria do universo.
Ainda em processo de entendimento, eu estava trocando de pele. Era como
se sentisse uma mão escura e pesada, esmurrando minha garganta tentando sair
pela boca, quebrando todos os meus dentes e ossos. Eu sentia que aquilo que eu
tinha, naquele plano espiritual, era como uma pele ou casca elástica, flácida,
de um homem sem moral e culpado. Culpado por ser um homem. Culpado por não ter
moral.
- Culpadx, culpadx, culpadx... – ouvia-se por toda sala.
- Acalmem-se poderosxs deusxs! – Gritou o Deus Oculto, parando a barca
do sol.
- Sentem-se... – Levantou Ísis, impondo ordem ao Caos – E Deus Oculto, eu
sei seu nome, lembre-se que o livrei do veneno da serpente...
Culpado ainda ressoava dentro da minha caixa de Pandora.
- Deusxs soberanxs – continuava Ísis – o fato que deve ser julgado aqui
não é o envolvimento destes dois astros no universo celeste, mas o resultado
que dele se procedeu. O oráculo previu que dentro desta sala estaria o traidor
que trouxe Serket, a Deusa Escorpião, do mundo dos mortos. É este crime que
deve ser julgado. Do que vale o poder de uma palavra perante o império de um
silêncio? Julga-se aqui o que não pode ser falado, mas compreendido neste plano
espiritual elevado. O que me dizem sobre isso presentes Sol e Lua?
- Digo sobre minha conduta, que apesar de iluminar o dia com meus raios,
cegando a visão de qualquer inocente, nada tenho com isto! – Disse o sol,
recusando-se olhar para a Lua.
- Pois nada tenho a declarar sobre o fato. Permaneço em silêncio sobre
todas as minhas fases, durante as noites mais claras e mais escuras. Sobre a
sombra dos que dormem, garanto que nada vi!
- Eu apenas fecundava os meus versos, e criava nos meus pastos um
rebanho de ilusões! Não foi minha culpa ter perdido a rota, em um entroncamento
de rios encaracolados, dando de cara com o frondoso Castelo Maiano, revestido
com vinte e uma pastilhas nos mais variados tons de prata... – continuava o
Sol.
- Diz uma antiga lenda, que a cada dez mil anos duas almas são postas em
silêncios mortais para celebrar a complexidade dos tempos. Se usássemos a
máquina para amarguras, Pranayama... – sugeriu Buda.
- Você não pode tratá-lxs assim! – Interrompeu Ísis – Elxs possuem
sentimentos! E por ter passado por bilhões de galáxias e esferas celestiais,
sabe que não estarão desamparados e sós dentro de suas amarguras. É loucura
pensar na solidão...
- Levem em consideração que cresci sobre a tirania de um.xa líder opressor.xa, que deixava que meu brilho se restringisse ao brilho delx, colocando
sobre mim metade de todas as sombras e espaços vazios universais – disse a Lua.
- Preciso expurgar tudo que sinto! Este discurso talvez seja longo
prezadxs Deusxs! – o sol levantou-se como se fosse o horário do meio-dia – Eu
sabia que não encontraria você Lua, nem na borra de café, no horóscopo semanal
ou em um trevo de quatro folhas. Não estaria lá porque você é como o tempo,
inconstante e mutável, de fácil maleabilidade e difícil compreensão. Não
estaria mais lá sendo oxa mesmx duas
vezes. Nem se torturasse Chronos, senhor do tempo eterno e imortal, enfeitando
todos os segundos multiplicados em minutos, “tic-taqueando” sobre os dias e as
horas intergalácticas e extraplanetárias. Elx era a pessoa certa na hora
errada, como um espelho quebrado com duas projeções, um buraco de minhocas e
seus mistérios. Como você pode ser um rascunho ou uma sombra, quando está
constantemente escrevendo a sua e outras tantas histórias? Não pergunto meu
signo de representação, quando vejo a ingenuidade de uma criança humana me
desenhando plano e arredondado. Como se fosse apenas um signo. Não ligo para a
imagem. Todos os dias ela se desfaz e se refaz, perpetuando novos horizontes e
signos. E são ávidos estes períodos em que lhe vejo partir com Serket, dizendo
não saber para onde está indo. Percorri o mundo das súplicas de joelhos, andei
quilômetros solitárix. Hoje compreendo que o que tinha não era o fardo de uma
doença ou a sombra de um mundo. Apenas era o impulso de uma estrela jovem e
selvagem, que me deixou mais forte do que eu pensava que fosse. E o que me diz
agora Lua?
- O que queres que eu diga? Já não está fartx de me fazer suas
perguntas, [s.(e-u).axu ] arrogante? Prefere que eu responda de um modo erudito, de um modo
bonito, ou com outra linguagem menos rebuscada?
- Prefiro que seja verdadeiro e menos ensaiado.
- De toda verdade, eu não sei. E não sabendo já me encontro em algum
processo. O que você teria ainda para me ensinar, que eu já não saiba ou não
tenha aprendido?
- Você se ouviu dizendo isso?
- Sim, em alto e bom tom – encarava o Sol com um silêncio, sem feições –
O que tem naquilo que eu digo?
- Não está no que diz, mas no que não diz. Difamastes a minha terra com
seus pretéritos! Veio até mim provocando um eclipse quando já estava se
programando para receber Serket, no ritual de cinzas. Paciência. O tempo
derruba até oxa.s mais
sábixs, faz deles refém de suas próprias escolhas, conclusões e argumentos. O
tempo transforma a terra, modifica a paisagem, enriquece oxa miserável, deixa também na miséria oxa mais afortunadx dos seres. Ele lhe enche de rugas,
lhe tira e lhe traz moralidades e imoralidades. Concede todos os seus desejos e
sonhos, quebra todas as delicadezas das coincidências.
- Não acredito nelas. E não é o tempo que faz tudo isso, sou eu e o
mundo.
- Venerável. Rendo-me ao seu raciocínio. Mas, você e o mundo são feitos
de tempos. E refeitos também, com este mesmo pensamento. Cada pedaço seu tem um
tempo esgotável. Coloque o nome que queira colocar sobre isso, pinte com a cor
que lhe apetece... Até este diálogo já está no tempo passado. O que quer fazer
pelo seu tempo presente?
- Isto está errado...
- O tempo também é um erro. Você abandonou tudo por amor?
- Não preciso falar sobre isso.
- Não me diga que seu reino está ameaçado por sua doença... Somos dois
universos adoentados, em contrastes diferentes. Estamos fadadxs ao próprio
processo de nossas mortes e extinção. Eu quero sempre me defender demais,
andando na defensiva, enquanto você não tem nenhuma defesa. Não é uma doença
que separa nossas condições... Isto nunca foi um problema para mim.
- Eu discordo, e creio que não...
- Carxs deusxs, Lua soberanx dos campos do sul e Sol das montanhas do
norte, não importa o que foi dito ou feito – interrompeu Ísis, percebendo que
não chegariam a conclusão alguma – estamos deliberando sobre a capacidade de
falta da compreensão, onde pelo que se entende, a comunicação se fez restrita e
falha, não é mesmo? Refaço outra pergunta sobre este processo que lhes abateu, quando
eclipsadxs um pelo outrx, digam-me, estar em primeiro é sinônimo de
visibilidade e iluminação? O que é estar iluminadx? Não, não responda Buda –
fez sinal com a mão para Buda sentar novamente no seu lugar – Precisa-se chorar
rios e oceanos com melodramas, sobre os pesos que vocês mesmxs colocaram sobre
as coisas? Julgo também por encerrado o motivo ao qual nos reunimos nesta
presente e já passada data...
- E a quem recairá a responsabilidade deste crime de carma? – perguntou
Thêmis, deusa da justiça.
- A ninguém. Houve a invocação de uma deusa celestial do mundo dos
mortos, por intermédio de magia negra ancestral, porém as consequências recairão
sobre a consciência das partes, que se pesada não terá sossego até nas horas
mais escuras dos dias e das noites. De fato, que isso seja por aqui encerrado.
O que me diz Sol, já que não aprendeu ainda a silenciar-se?
- Lembre-se Lua que neguei e continuarei negando a sua oferta.
- Podemos até sentar conversar sobre isso – respondeu oxa Lua – O que mais quer saber sobre mim? Quer que eu
me redima por viver a minha vida da maneira que eu bem entendo? Eu estou
pensando em mim, e não deixarei de fazer isso. Deveria pensar no mesmo.
- Não. Devo pensar naquilo que desejo. Estarei por aqui e não quero que
você me reconforte com o horizonte. Se eu virar matéria escura no céu noturno,
estarei infinitamente mais sólidx e disperçx, como meu amor por ti. Aceito esta
derrota, mas não aceito permanecer derrotadx. Então é isso? Você acha que não
teremos mais nenhum tempo futuro?
- Creio que não. Fala muito sobre um tempo que não é nem mesmo meu.
- Não tem problema. Você apenas está sendo sincerx. E eu não posso mais
viver com isto sobre minhas costas. Não estou preparadx para viver desta forma.
Não consigo viver assim. Me desculpe. Eu sempre amarei aquelx que eu conheci,
toda a estatura, toda a forma e sua própria adequação.
- Eu mudo de formas, nas mais variadas épocas do ano, entenda...
- Eu te amo tanto que mesmo que o céu caísse sobre mim agora com todas
as suas estrelas, não me importaria, pois teria a firmeza de seus olhos e a
maciez dos seus lábios, o encaracolado de seus cachos. Eu amo tanto a mulher e
o homem que você é. Amo suas dores e não posso descrever de uma forma concreta
todas essas coisas. É como se o mundo coubesse completamente sobre meus braços,
e eu conseguisse unir os continentes em uma Pangeia sentimental...
- Quanto sentimentalismo. Peguem elxs vadias! – Gritou “Mother DraGui”.
Estava aberta o começo de uma guerra espiritual.
IV.
Minha pele flácida e elástica rompia-se como uma corda em um cabo de
guerra. Aquela sensação de parto, apertava a minha garganta. Toda a
disformidade viscosa e negra que sapateava sobre minha cabeça, e rodopiava
dentro dos meus ouvidos, enegrecendo a minha visão, estava para nascer. Era
como estar morto gerando outra vida, e dentro desta vida falar sobre a vida,
como no mundo a metalinguística explica a palavra pela palavra. Nascia em mim
outrx de mim.
O movimento era contrário, sem uma imagem. Então nasceu, sobre os olhos
descuidados e desinteressados de um.xa meninx
noventa e seis. Era escurx como a mentira e o silêncio, em um tom uniforme e
brilhoso, mas com uma flor sobre os lábios. Regido sobre a regra da natureza, onde
o que brilha pode ser perigoso. Quem sabe nasceu em mim outrx de mim um tanto
quanto melindrosx. Daquelxs que nunca reparam sobre outros olhos, amando apenas
uma coisa e não o que ela representa.
- Peguem elxs vadias! E tragam aquelx “Le Freak, C'est Chic” em trabalho
de parto até mim...
Todas as cores do tribunal foram desestruturadas. oXa.s deusxs em cólera rompiam as barreiras do visível
por todos os lados. Atiravam contra um batalhão de armadura prateada, em uma formação
de “Sissy”, protegendo oxa Lua que já
havia feito previsões com um meio sorriso no rosto.
O pássaro parou sobre o ar, enquanto o movimento dos planetas era posto
ao contrário. Deus Falcão gritou sobre todos os grãos de matéria sólida do
universo. Ísis escureceu seus olhos, abrindo suas asas e derramando sobre o não
espaço um caminho de leite materno, via lácteo, proferindo lamentações e
injúrias. Seu grito de dor movimentou o carro alado do deus Sol, e acordou Zeus
normativo e os deuses do panteão grego. Subiram com suas carruagens e trajes de
batalha, rompendo com a simplicidade do giro em sentido horário.
Os deuses nórdicos ancoravam seus barcos flutuantes perto da
resiliência. Serket com seus impropérios cativava um canto melodioso e enjoado:
- Resiliência é tomar no meio do seu cu.
Justo elx que de tanto trocar de cadeira, já tinha feito o cu até perder
o a(ss.c)ento.
Dentro da nave, rompendo o escuro paradoxo de professar um ato político
covarde, para universos infinitos de estrelas e um, sentia sobre mim o peso de
um quarto das distâncias adquiridas. Era como se estivesse com minha bússola
mental quebrada.
As violações se cessaram, quando abri minha boca, rompendo com aquela
luta silenciosa e sem palavras. Sentia a primeira contração do meu parto:
- Parece estranho, mas se tiver que pedir desculpas, eu peço
desculpas... Não estava ciente de determinados processos que o universo me
trouxe, e não sou uma pessoa de silêncios ou ruim...
- Agora é tarde, não poderão evitar o processo. As rodas do destino
estão em movimento – disse Serket, continuando seu canto sorrindo.
As três irmãs Moiras, tecendo o fio da vida dos humanos e deusxs,
ofendidas pelos xingamentos contra seu pai Moros, deus do destino, apareceram
sobre os anéis de Saturno com sua Roda da Fortuna oxa desafiando com uma tesoura:
- Esbraveje mais uma vez sua vitória, que oxa transformo nx maior dxs derrotadxs!
- Quem é o culpadx por esta criatura humana gemer em agonia, rodando no
infinito como sala de parto? – perguntou Ísis.
oXa Sol
padecia sobre um leito de raios dourados, não conseguia responder por estar em
desolação. oXa Lua em serenidade tornava-se quem era de fato, uma
lua minguada de face oculta. oXa.s deusxs tomavam seus lugares perante o tribunal novamente. Buscava-se
por ordem, transformando o meu parto em um espetáculo assistido, celebrando-se
o nascimento do outro eu, dentro de um caldeirão de ferro, em um quintal de
estrelas. As “DraGuis” estabeleciam os termos de um acordo, enquanto Ísis
retomava seu posto e refazia sua pergunta:
- Alguém é responsável por isto?
- Creio que tenha sido eu – respondeu “Mother DraGui” – Buscando por
olhos acabei partindo em silêncio, eu e esta criatura não dividíamos a mesma
linguagem. Não cogitava que após o primeiro contato o deixaria com um fruto
interno lodoso e negro, que estivesse o corroendo e destruindo por dentro. Como
saberia que este sentimento assumiria outra forma, dando-lhe outro corpo
imaterial... Dando-lhe uma linguagem... oXa transformando em um.xa garotx com
“X”?
De pernas abertas e desacordadx, celebrava o renascimento da madrugada,
com o seu manto escuro e a trilogia do céu mitológico. Ísis pediu para que
levassem até o caldeirão a tesoura das Moiras, um jarro de água do Nilo, e
panos limpos. Concluiu com uma voz sentenciosa:
- Pelas forças do universo, e pelos termos sugeridos por todo seu
exército “Mother DraGui”, minha sentença é que não pague pelo seu crime nas
mãos e julgamentos brutais do mundo humano. Quero que fique ciente porém, que
este ato lhe será cobrado, não por mim, mas por quem daqui, deste tribunal, que
desejar o cobrar... Crio também, um novo código de conduta chamado “D.Err(axo)ta!2”, para
todxs que foram derrotadxs pelas armas da vida, que acostumadxs com o silêncio
ainda propagam o mesmo silêncio, deixando lacunas no espaço e tempo da memória.
Mas, são merecedorxs de uma recompensa: fugir da roda das reencarnações
carmáticas e amores rasos. Que esta língua EXISTA. Ela se tornará a vitória
sobre o medo, a revelia de quem espera com respeito a verdade não dita, o
desejo... Olhem! O (re)nascimento...
Enchendo o tórax de ar, a criança não chorou, abriu seus olhos e
bravejou o seu nome com força:
- Sou aquelx que (res)pira com o (peito), podem me chamar de “RESPEITO”.
Involuntariamente surgiu de sua boca com sobressaltos oxa [s.(e-u).axu] irm(ã-ão), que acrescentou perante o espanto de todxs:
- Sou aquelx que (am)olece o que é (or)dinário, podem me chamar de AMOR,
mesmo que involuntário”.
Os gêmeos subiram a bordo da barca do sol, indo ao encontro de Castor e
Pólux, esparramando-se dentro de um verso longo e calmo.
- Coloquem esta criatura humana no Argo e a levem novamente a Terra. Ela
precisa de um pouco de realidade após tanta ficção – disse Ísis.
Eu não sei o que aconteceu após tudo aquilo. E não saber foi a melhor
coisa que já fiz na vida. Nem toda história é feita de palavras. Algumas são
feitas com o silêncio. A galáxia dormiu em paz, sem monstros embaixo da cama. A
lua girou, o céu contorceu. No sol era amor. Na Terra com os Argonautas, eu
gritei:
“- Break the news—you're walking out…” – No céu estaria para sempre a
marca do meu nascimento.
V.
- Oh! Ele está acordando...
- O quê?... Onde estou Orion?
- Está no hospital recuperando o seu gênero. Estava alucinando em casa,
fora da normatividade, falando sobre um sujeito sem estereótipos e livre de
julgamentos. Pensamos em conjunto e achamos que estava louco. Seu pai o
internou para tratamento. Um tratamento milagroso. Ele mesmo é um machista em
recuperação...
- Me tirem daqui! Vocês nunca poderão fazer de mim o seu depósito de
lixo, sou detentor de um punhado de memórias atemporais, viajei por inúmeros
espaços...
- Doutor! Doutor! Sedativos! Sedativos!
- Filho!.. Segure o outro braço dele Orion! – disse meu pai correndo em
minha direção quando entrou no quarto – Ainda bem Doutor! O que irá fazer com
ele?
- Não se preocupe, será silenciado. Diga meu jovem, o que você é?
- Eu não sei – respondi.
- Diga para seu pai que é um homem!
- Eu não sei se o sou! Sou filho do meu tempo!?
- Assuma a culpa que lhe cabe... Você é culpado! Culpado por não ser um
homem! – dois enfermeiros me colocavam para dormir.
- Machista em recuperação, querido homem-pai? Pois não lhe cabe bem este
papel... – fechei meus olhos e nunca mais os abri. O mundo havia matado mais um
derrotadx. Apenas uma criatura humana que abrigou e gestou o amor e o respeito.
Na parede do quarto estava a foto de um homem morto. Um homem que nunca
foi apenas um homem. Partiu com sua mala para as estrelas, encontrando o abraço
de [s.(e-u).axu].s filhxs
já crescidxs e empoderadxs.
FIM.