Para ser
sincera, quando me falaram: “Escreva sobre aquele homem!”, eu fiquei vagando
dentro de um espaço, que não poderia ser o meu. Escrever o quê? Pois bem, então
tentarei escrever alguma coisa, pensei. Como eu, uma perturbação propagada no espaço,
pensaria em escrever alguma coisa que fosse real o suficiente, para sair do
papel e dar movimento à construção de uma fala?
Bem,
prazer. Esta sou eu. Amy Waves. Sim, o mesmo “Waves” de ondas... Aquelas coisas
que se propagam em alta velocidade, transportando energia e informação pelo
espaço. Aquelas que não precisam de um meio material para existirem, como eu.
Mas o que falar sobre aquele homem? O homem morto que me antecedeu? Ele já
disse quase tudo sobre si mesmo, eu pensei, relendo o que ele já tinha
publicado.
Ele foi
homem para caramba, puxa vida! Mesmo sem saber que era pansexual, de gênero
fluído, até seus vinte e quatro anos, já tinha se formado, pós-graduado, se
juntado com sua ex-namorada (por quase um ano), mudado tantas vezes de cabelo
que acho que até ele perdeu-se nas contas. Era um daqueles pobres infelizes que
sentiam grandes amores e nunca os vivia por completo. Amou por três vezes, um
amor sobrenatural, mas que nunca deu certo. Primeiro pela menina morena, que foi
embora tão cedo. O ridículo ficou dois anos sonhando com o impossível: que ela
voltasse para ficarem juntos, celebrando aquele amor de mãos dadas e sem intenções,
que aos dez ou onze anos ainda nos é permitido, ou ao menos era, pois hoje o
tempo não é mais cronológico.
Abre
parênteses: sobre o segundo já nem se fala! Foi tão falado em terapia, que nem
parece mais um sentimento. Quebrando um pouco o vínculo de segredo do paciente,
daquele homem que me antecedeu, confesso que foi descoberta a seguinte
afirmativa: “Vinicius, você nunca amou aquele menino. O que você amou foi a
imagem, que depois se materializou nos seus livros, e você viveu aquilo como se
fosse real. Deixou seu subconsciente ganhar mais forma do que era consciente. O
seu amor foi inventado”. Grandes histórias aquelas, sobre o homem que amava
outro homem sem ser amado. Morreu porém com culpa, diante da dúvida de sua
palavra. O que foi aquilo no carro? Passou a ser mentiroso, mesmo não sendo. O
personagem era de mentira, não condizia com a pessoa real. Mas sabe, confesso
que ele me disse uma vez, ainda por carta, que estava feliz por pensarem que
era mentira. “Quem é que quer, com a boca cheia de dentes, esbravejar que ama e
que ficou com alguém que não tem respeito pelo próprio corpo?”, ele disse. Antiquado? Nada moderno? Atrasado? Talvez. Mas ele ainda preferia, e acho que
posso falar isso por ele, a qualidade a quantidade.
Uma
história? Você quer que eu conte uma história sobre isso, que ninguém saiba?
Bem, vejamos... Lembro-me de uma vez que recebi uma carta muito florida, com
todas as palavras escritas em caixa alta, e muitos e muitos símbolos de
alegria, dizia bem no começo: “AMIGA AMY, EU DEIXEI DE AMAR ELE!”. O Vinicius
estava feliz, mais feliz do que nunca, sabe aquelas felicidades pequenas, tipo
torta de bolacha com chocolate? Pudim de leite condensado? O sol em um dia frio
de inverno? Bem... Era assim que idealizei aquele enunciado. Mas, depois de
algumas linhas, percebi que o maior e o melhor motivo daquilo tudo, era a torta
de maça principal. Ele escreveu para mim dizendo: “Fiz minha primeira torta de
maça, e adivinhe! Convidei ele para vir até aqui, servir o pouco do resto do
amor que eu ainda tinha. Foi uma experiência bacana, ver ele comer dois pedaços
servidos no prato dos meus cachorros. Para um bom mentiroso, lambeu até os
dedos. Verdade seja dita, se não é válida a história do carro, vou tratá-lo
como trato os meus animais [...]”. Nem posso dizer como fiquei surpresa com
isso! Não parecia ser alguém que guardava veneno, ou que remoía pequenas e
cotidianas vinganças. Me perdoe Vinicius, tive que contar!
Sobre
quem? Como? Você quer saber sobre aquele terceiro amor? Neste eu estive mais
presente, e acompanhei de perto. Vi todo o processo com olhos atentos, e não
pude evitar me comover com a situação em que ele partiu do mundo. Porque eu
estava lá naquele dia. Estava lá andando com ele, abraçando-o e levando-o para
casa, pois o mundo dele estava acabado. Isso me corta o coração. Foi com
desespero que me joguei sobre os pés dos que passavam, pedindo por socorro
quando aquele carro entrou pela contramão nos atingindo em cheio na calçada.
Estava me acostumando a morar em Pato Branco, cidade pequena e diferente das capitais.
Bem, é que ele não era mais o mesmo depois do segundo que amou. Eu via dentro
dos olhos cansados daquele homem, suas três tentativas fracassadas de suicídio.
Não existe a possibilidade de não ver o mundo quebrado dentro de outros olhos.
Foi em
Outubro de 2017 que eles voltaram a conversar. Eram aquelas conversas bobas e
fiadas de alguém que quer puxar assunto para manter uma linha de raciocínio e
interesse. Não era um amor no começo de fato. Lembro que ele me mostrou uma
conversa e me disse: “Bem, acho que não sou bissexual Amy, existe algum
problema nisso?” “Nisso, o quê?” perguntei novamente não entendendo o motivo da
pergunta, “Ele é Drag”, “Não vejo nada de errado com isso” respondi
tranquilizada. Mas precisamos falar sobre isso? Não acho que devo entrar dentro
de histórias pessoais de duas pessoas desta forma. Eu sei que falei sobre o
primeiro e o segundo amor, porém eram inocentes e idealizados, não eram com
pessoas reais, não envolviam histórias reais, lugares reais (além do carro),
palavras reais... Esta conversa está me deixando indisposta! Não quero falar
mais sobre isso. Posso indagar até que ponto o G. (vou denominar ele como
apenas uma letra do alfabeto) foi humano o suficiente, dizendo e mostrando ser uma
boa pessoa, permitindo que chegasse em um ponto insustentável onde ele sabia
que alguém o amava tanto, que largaria tudo (como ele fez depois do acidente em
Março)... Preciso dizer isso? Foi ele que matou meu melhor amigo, como você
acha que me sinto falando sobre este assunto?
Acidente?
Sim, houve aquele acidente, bem lembrado. Mas o fato é que silenciar é abrir
brechas para o absurdo do mundo. Junte isso com todas as coisas que o Vinicius
deixou por escrito, no seu último livro póstumo “D.Errºxªta²!” que você tem o recheio completo. Me sento
na cama tentando entender o que se passou com eles. Vinicius me parou um dia e
disse: “ G. vai vir até aqui, e falou que posso perguntar o que quiser saber”,
mas sei que G. nunca respondeu de verdade uma pergunta. Se entrei em contato?
Não. Não quero entrar em contato com um assassino. Não é à mim que ele deve
pedir desculpas. Agora é tarde para isso. Aquele homem está morto porque não
aguentou o acidente, não aguentou saber que dentro de uma semana você, G. veio
mais de três vezes para dentro de um mundo por completo, com casa, família,
lugares e amigos... E foi embora em um domingo para não mais voltar, dizendo
tudo que podia e muito mais, deixando aquele homem sozinho na rodoviária com o
peso de dois mundos, indo, depois de horas chorando na praça, expulsar os
demônios do mundo no chão do chuveiro. E aquele maldito silêncio de dias?
Lembro que lia as coisas que ele mandava para o Vinicius com a frase: “Não
quebre o silêncio se não for para melhorá-lo”. Besta ele, que não sabia que
isto apenas servia para a música e não para pessoas, qual é cara? As pessoas
não são notas musicais e nem estilos para serem melhoradas, elas são elas e são
o que são... E assim sem nenhuma explicação ele diz: “Estou indo embora, morar
com ele”. Morar com ele? O mesmo das fotos que você curtiu naquele domingo da
ida, não pense que ele não viu. Me contou tudo depois, culpando-se por não ser
interessante o suficiente para alguém ter algum vínculo. Você o matou muito
antes do acidente. Não quero mais falar sobre isso... Também tenho os meus
próprios demônios pessoais. Sou uma mulher imaterial no mundo, como tantas
outras também são...
Sobre que
história? Ah tá. Que ninguém saiba, certo? Bem, acho que é neste blog que
existe um texto intitulado “Já Sinto”, isso até me restituiu um pouco do humor
perdido. G. não dizia nada, e o Vinicius não era nem um pouco burro. Não
repitam isso em casa, crianças! Ele descobriu quem era a pessoa, bem simples.
Porém, disse-me ele “Não era tão óbvio?”, e foi daí que ele escreveu sobre o
trabalho de outra pessoa, com subjetividade até o pescoço. Rimos muito do
resultado... Bem, sobre o trabalho e os elogios ele me disse que eram
verdadeiros, mas vindo de alguém que deu torta em prato de cachorro, há de se
desconfiar se foi intencional ou não. Tem outras coisas, porém fiquei sabendo
que estão juntos, e não quero estragar as núpcias do casal. A psicóloga ainda
insistia em dizer: “Deixe de ser ingênuo”. Bem, antes de morrer ele deixou de ser
bem mais do que isso, talvez fosse o estado da consciência em que alguém chega
quando descobre que não tem mais tempo. E para ele, o tempo nunca foi o mesmo tempo
cronológico da história. E cansei de falar sobre isso. Para ser sincera, cansei
das perguntas, sumam daqui! Foda-se essa porcaria toda, espero ter ajudado em
algo. Se não, boa sorte, boa vida, boa morte! Ainda estou perturbada com alguns
fatos...
Dia 09 de Junho de 2018, Amy
Waves.