segunda-feira, 30 de julho de 2018

Wait By The River!

Desde criança, quando pensava no piso do meu jardim cheio de cacos, imaginava a imagem inanimada de um rio não fixo, que começava em lugar algum e acabava em um infinito desses qualquer, que valem mais do que as reticências ou o semblante da minha própria existência.
Este rio não era o rio de um ninguém que não fazia nada. Ele pulava de pedaço em pedaço (todos aqueles cacos coloridos) e fluía com a rapidez da imaginação utópica de um menino sonhador e solitário. E eu era por tantas vezes um barco de papel, que tinha aprendido a fazer na aula de artes na escola.
Caminhava sem o peso do mundo e descalço, a folha em branco me representava, e com ela eu poderia desenhar castelos, dobrar e enfrentar todos os mares e oceanos, recortar os pedaços do que achava bonito, montando com colagem a imagem do que para mim era perfeito.
Quando o tempo passou o menino começou a se dar conta, que aquele rio imaginário era apenas o seu sonho, e o mundo não era um mundo habitável para os sonhadores. Baixou a cabeça e cedeu espaço e lugar para a realidade do relógio. O rio espesso e escuro era apenas rejunte de argamassa entre cerâmicas que tinham sido quebradas aos cacos, e colocadas de forma irregular dentro de um espaço pré-determinado para não haver terra alguma.
Sem fé e sem rio ele parou de imaginar a brisa marinha. Colocou na cabeça que seria um nada ficcional, personagem secundário da sua própria história. E se desencontrou daquele menino, perdeu o ar idealizando o amor, personificando-o em outras coisas e pessoas, que iam como o tempo do relógio, rodando em sentido horário e constante, em círculos. Mas como poderia haver tanta mudança de horário, segundos e minutos, se aquela porcaria só ficava presa e parada na parede, simbolizando um tempo que gritava e berrava: “estou mudando”?
E ele parou dentro da sua própria constatação. Estava viciado em categorias que o detinham como um relógio. Precisava ser alguma coisa a mais do que um nada, mesmo que ser um nada já fosse ser alguma coisa.
Assumiu o papel que lhe cabia. Era uma obra de ficção em coletânea, cheia de inconsistência humana, mas repleto de realidades feitas de carnes e ossos. Passava a ser um homem fechado e sólido, limitando-se a caber dentro de caixas: o cabelo que não era bom suficiente, os olhos verdes que não serviam para nada, a pele clara que trazia conforto entre os meios e não marginalizados, a magreza demais em relação ao que era proposto, o culto religioso pagão, “é brasileiro? Não entra aqui não!”, o homem nascido homem que não poderia perder a razão... Sem desvios, eles diziam. Dê pouco trabalho, eles alertavam. Não faça nenhum barulho, eles proibiam. Não perca seu tempo com mais ninguém...
Ninguém queria ser um nada, isso ocupava um tremendo tempo, não representado pelo relógio da parede. Diziam também: “está na hora do seu remédio”, “está na hora de você escolher o que quer”, “está na hora de você fazer alguma coisa da sua vida”, “está na hora de comprar uma causa, comprar um amor, um novo aparelho celular, uma correção ortodôntica, uns quilos a mais na academia, uma roupa masculina e da moda, a beleza que lhe vendem pela televisão”, “está na hora de ter um filho, de se assumir para a sociedade, de se formar em uma universidade, arrumar um emprego, ter mais responsabilidade, passar a ser alguém normal”, “você está perdendo tempo, sim! Está na hora”...
Ele percebeu que ceder a tudo isso não era mais ver a lua no céu, nem as estrelas de madrugada, era como estar morto dentro da vida. Não teria poesia, nem mais nenhuma encenação... Nem a música que lhe fazia ser o melhor dançarino da sua sala de estar. E as bolhas de sabão? Ficariam para as crianças desocupadas. E as balas e chicletes? Não serviriam mais para nada. Ele não poderia pagar por um tratamento se tivesse uma cárie. Seu mundo resolvia-se com um verbo regular chamado “pagar”.
E então... Cinco minutos de silêncio.
A realidade não era de toda má. O amor personificado lhe tirou dos eixos e jogou-o de cabeça para baixo dentro da sua história. E ele disse: “Eu te amo, te quero feliz mesmo que não seja comigo, te quero bem mesmo que não ao meu lado, quero lhe ver sorrindo mesmo que não seja para mim”. E ele então aprendeu que a perfeição e o tempo eram feios. Que papel não serve apenas para lastimar e escrever drama, que um homem completo é muito mais do que uma roupa lavada, comida na mesa, sexo na cama. Um homem de verdade não precisa nem ser um homem, pode ser uma mulher ou uma drag toda montada, um prato redondo de macarrão com carne sem salada, um silêncio, dois silêncios, um piso de cacos coloridos com um rio imaginário cheio de flores...
Ele aprendeu a habitar dentro da sua própria pele. E isso ninguém tiraria mais dele neste mundo. Não esperava pelo rio, pois o rio era ele e ele fluía, fluía, fluía... Aprendeu que não se espera o que não é ele mesmo, e outros rios e corredeiras seriam um complemento imperfeito dos sentimentos totais que ele se permitiria sentir.
O rio espesso e escuro não tinha formato, nem peso, nem gênero, nem hábitos ruins ou bons. A folha cheia de escrita o representava, e com ela ele poderia retratar o que queria, derrubando o relógio parado da parede. Ele soprou seu barco de papel e sabe-se Deus para onde ele foi, ou onde se encontra... Ele reviu o menino que era, dentro de uma esquina de cabelos cacheados. Dentro do delineado de uma esquina. A esquina de um homem cheio de cacos.

Dia 30 de Julho de 2018, Vinicius Osterer