Desde criança,
quando pensava no piso do meu jardim cheio de cacos, imaginava a imagem
inanimada de um rio não fixo, que começava em lugar algum e acabava em um infinito
desses qualquer, que valem mais do que as reticências ou o semblante da minha
própria existência.
Este rio
não era o rio de um ninguém que não fazia nada. Ele pulava de pedaço em pedaço
(todos aqueles cacos coloridos) e fluía com a rapidez da imaginação utópica de
um menino sonhador e solitário. E eu era por tantas vezes um barco de papel, que
tinha aprendido a fazer na aula de artes na escola.
Caminhava sem
o peso do mundo e descalço, a folha em branco me representava, e com ela eu poderia desenhar castelos, dobrar e enfrentar todos os mares e oceanos,
recortar os pedaços do que achava bonito, montando com colagem a imagem do que
para mim era perfeito.
Quando o
tempo passou o menino começou a se dar conta, que aquele rio imaginário era apenas o
seu sonho, e o mundo não era um mundo habitável para os sonhadores. Baixou a
cabeça e cedeu espaço e lugar para a realidade do relógio. O rio espesso e
escuro era apenas rejunte de argamassa entre cerâmicas que tinham sido
quebradas aos cacos, e colocadas de forma irregular dentro de um espaço
pré-determinado para não haver terra alguma.
Sem fé e
sem rio ele parou de imaginar a brisa marinha. Colocou na cabeça que seria um
nada ficcional, personagem secundário da sua própria história. E se
desencontrou daquele menino, perdeu o ar idealizando o amor, personificando-o
em outras coisas e pessoas, que iam como o tempo do relógio, rodando em sentido
horário e constante, em círculos. Mas como poderia haver tanta mudança de
horário, segundos e minutos, se aquela porcaria só ficava presa e parada na
parede, simbolizando um tempo que gritava e berrava: “estou mudando”?
E ele
parou dentro da sua própria constatação. Estava viciado em categorias que o
detinham como um relógio. Precisava ser alguma coisa a mais do que um
nada, mesmo que ser um nada já fosse ser alguma coisa.
Assumiu o
papel que lhe cabia. Era uma obra de ficção em coletânea, cheia de
inconsistência humana, mas repleto de realidades feitas de carnes e ossos. Passava
a ser um homem fechado e sólido, limitando-se a caber dentro de caixas: o
cabelo que não era bom suficiente, os olhos verdes que não serviam para nada, a
pele clara que trazia conforto entre os meios e não marginalizados, a magreza
demais em relação ao que era proposto, o culto religioso pagão, “é brasileiro?
Não entra aqui não!”, o homem nascido homem que não poderia perder a razão... Sem
desvios, eles diziam. Dê pouco trabalho, eles alertavam. Não faça nenhum
barulho, eles proibiam. Não perca seu tempo com mais ninguém...
Ninguém queria
ser um nada, isso ocupava um tremendo tempo, não representado pelo relógio da
parede. Diziam também: “está na hora do seu remédio”, “está na hora de você
escolher o que quer”, “está na hora de você fazer alguma coisa da sua vida”, “está
na hora de comprar uma causa, comprar um amor, um novo aparelho celular, uma
correção ortodôntica, uns quilos a mais na academia, uma roupa masculina e da
moda, a beleza que lhe vendem pela televisão”, “está na hora de ter um filho,
de se assumir para a sociedade, de se formar em uma universidade, arrumar um
emprego, ter mais responsabilidade, passar a ser alguém normal”, “você está
perdendo tempo, sim! Está na hora”...
Ele percebeu
que ceder a tudo isso não era mais ver a lua no céu, nem as estrelas de
madrugada, era como estar morto dentro da vida. Não teria poesia, nem mais
nenhuma encenação... Nem a música que lhe fazia ser o melhor dançarino da sua
sala de estar. E as bolhas de sabão? Ficariam para as crianças desocupadas. E as
balas e chicletes? Não serviriam mais para nada. Ele não poderia pagar por um
tratamento se tivesse uma cárie. Seu mundo resolvia-se com um verbo regular
chamado “pagar”.
E então...
Cinco minutos de silêncio.
A realidade
não era de toda má. O amor personificado lhe tirou dos eixos e jogou-o de
cabeça para baixo dentro da sua história. E ele disse: “Eu te amo, te quero
feliz mesmo que não seja comigo, te quero bem mesmo que não ao meu lado, quero
lhe ver sorrindo mesmo que não seja para mim”. E ele então aprendeu que a
perfeição e o tempo eram feios. Que papel não serve apenas para lastimar e escrever
drama, que um homem completo é muito mais do que uma roupa lavada, comida na
mesa, sexo na cama. Um homem de verdade não precisa nem ser um homem, pode ser
uma mulher ou uma drag toda montada, um prato redondo de macarrão com carne sem
salada, um silêncio, dois silêncios, um piso de cacos coloridos com um rio
imaginário cheio de flores...
Ele aprendeu
a habitar dentro da sua própria pele. E isso ninguém tiraria mais dele neste
mundo. Não esperava pelo rio, pois o rio era ele e ele fluía, fluía, fluía...
Aprendeu que não se espera o que não é ele mesmo, e outros rios e corredeiras
seriam um complemento imperfeito dos sentimentos totais que ele se permitiria sentir.
O rio
espesso e escuro não tinha formato, nem peso, nem gênero, nem hábitos ruins ou
bons. A folha cheia de escrita o representava, e com ela ele poderia retratar o
que queria, derrubando o relógio parado da parede. Ele soprou seu barco de
papel e sabe-se Deus para onde ele foi, ou onde se encontra... Ele reviu o menino que era, dentro
de uma esquina de cabelos cacheados. Dentro do delineado de uma esquina. A esquina
de um homem cheio de cacos.
Dia 30 de Julho de 2018,
Vinicius Osterer