Capítulo
III – “Ultraviolência”
Já
haviam se passado três meses, deste o dia em que se conheceram, naquela
circunstância beirando um romance meia boca. Valkíria sabia pouco sobre quem
era o seu Valentim. Conhecia os seus hábitos mais sutis como a hora em que
levantava, sua comida favorita, sua banda predileta, a cor que mais usava, o
que o fazia chorar e o que o fazia rir com facilidade. Sentia a necessidade de
saber quem era aquele homem na sua intimidade, quando fechava a porta com aquele
lindo sorriso hollywoodiano. Ele fazia mistério quando se tratava de sua dor
mais profunda e isso instigava cada dia mais a curiosidade de Valkíria.
-
Quer assistir filme? Está passando Titanic na TV, o melhor momento, olha... Ele
se partindo pelo meio... Não é bonito? – pediu Júnior quando Valkíria cruzou a
porta de seu quarto.
-
Sem humor para isso hoje. Será que eu sou louca?
-
Isso é uma pergunta ou uma aceitação?
-
O Valentim é tão fechado. Ele não se abre comigo. Sei tão pouco sobre ele, não
sei quase nada além daquilo que qualquer um observa...
-
Só eu acho que não tem sentido? Olhe ali... Ela podia ter salvo ele... Tinha é
que ter caído na água gelada e morrido também...
-
Você está me ouvindo?
-
Sim, Valkíria. Pela enésima vez nesta semana. Você que não toma uma atitude,
sabe... Peça o que quiser para ele. É melhor do que ficar aí desperdiçando
tempo pensando e pensando e pensando... Toma uma atitude se isso lhe incomoda.
-
Sei, sei... E este filme é romântico, não teria graça se ela morresse... É
emocionante vai...
-
O amor não é para ser romântico. Tem que ter um pouco mais de verdade e de
graça, menos idealização. Se não fica chato. Perde o sentido. Nem só de amor se
vive na vida...
-
Credo. Você me deu depressão... Vou ir me arrumar... Até mais.
-
E eu acabar este filme e sei lá, tentar escrever um romance mais sombrio, com
sexo, falas sujas e humor, onde eu seja uma mulher.
-
Nossa!
-
Brincadeira... Tenho que estudar para provas e mais provas...
-
Boa Sorte!
-
Lhe digo o mesmo, querida Valkíria.
-
Irmã não lhe convém dizer?
-
E Júnior não lhe convém dizer?
-
Tudo bem Valmor...
-
Sai... Olhe ali ele morreu e eu perdi...
-
Hahahahahahahaha
Quando
a casa reverberava o silêncio das áreas comuns, e a vida estava em movimento apenas
dentro dos quartos, com as portas fechadas:
-
Cadê as pessoas desta casa? É dessa forma que me tratam... Valkíria? Júnior?
Cadê todo mundo?...
-
Oi pai... Precisa de alguma coisa? – disse Júnior aparecendo pelo corredor.
A
voz que reverberava era de um senhor alto, magro, com os cabelos escuros, mas cheios
de fios brancos, demonstrando certa idade. Estava embriagado. Do seu lado o
acompanhando, estava uma mulher alta, magra e loira, visivelmente mais nova, que
bebia no bico uma vodca barata, já pela metade.
-
De quem? De você? Não quero suas mãos delicadinhas fazendo nada para mim,
princesa...
-
Por que ainda falo com você? Nunca entendi por que você é meu pai!
-
Tenho duas filhas... Só que uma tem um pinto. Passa também batom? Ou só passa o
batom no seu cu?
-
Pai... Você bebeu? Quem é essa mulher?
-
Essa mulher tem nome viu, se chama Rubia – disse a mulher embriagada para
Júnior.
-
Rubia. Esse nome lhe convém. O que você faz com uma prostituta aqui em casa
pai? Você perdeu a noção do limite de convivência entre as pessoas?
-
Sua filha me chamou de prostituta!
-
Mais respeito, exemplar mal feito de homem, ainda carrega o meu nome, errei
quando fiz isso, errei quando fiz este filho...
-
Eu não preciso ficar aqui...
-
O que está acontecendo, por que tanto grito... Pai? E você quem é? – disse
Valkíria abrindo a porta de seu quarto e dirigindo-se à sala.
-
Rubia, o nome desta prostituta é Rubia, Valkíria... Eu estou pegando as minhas
coisas e vazando daqui... Não preciso mais presenciar nada...
-
Sua filha ficou chateada...
-
Qual delas? – disse o pai de Valkíria entre soluços e risadas.
-
Eu te odeio seu velho doente – Júnior correu e se fechou no quarto.
-
Você cala a sua boca sua vagabunda de esquina. Retire-se daqui já. Se não sair
por bem eu chamo a polícia... Sai daqui sua rameira... Passa fora... E se abrir
a boca novamente para dizer alguma coisa sobre meu irmão, eu juro que você
aprende a voar sua galinha... E sai daqui pela janela... Aposto que isso
endireitará sua cara deformada... Cadela... – Valkíria foi em direção à porta e
a abriu, seu pai a seguiu e em um movimento covarde lhe deu um tapa no rosto:
-
Nunca mais fale assim com ela...
-
Vocês se resolvam... Não quero mais ficar aqui... - Rubia saiu pelo corredor em
disparada, deixando Valkíria caída sobre a porta aberta.
-
Satisfeita, Valkíria?
-
Você sempre consegue... Você mata tudo ao seu redor. Você planta sua imundice
por onde você passa. Acha que dessa forma você é um homem? Nunca mais encoste
sua mão em mim. Porque eu juro que eu lhe mato, seu filho de uma puta desgraçado.
Nunca mais use da sua ignorância para me bater, porque eu juro que você não
amanhece vivo. Eu lhe odeio e ao contrário da mamãe, eu não me importo com
você, eu não sou o seu capacho. Nunca mais levante a mão para mim, seu canalha,
bêbado imundo!
-
Você é uma porcaria... Deveria ter apanhado mais... Cadê a chave do outro
carro?
-
Eu vendi, eu enfiei no meio do meu cu.... Eu te odeio, seu filho de uma égua,
eu te odeio com todas as minhas forças... E espero que você nunca precise de
mim, porque eu nunca lhe ajudarei em nada... – Valkíria se colocou de pé na
soleira da porta e gritou em direção ao meu apartamento: - Vai sua fofoqueira,
espalha o seu veneno, sua linguaruda... Velha nojenta, um dia morre engasgada
com sua língua!...
-
O que você disse? Não tenho culpa se gritam no corredor... – respondi abrindo a
porta e indo em direção a Valkíria.
Valkíria
instintivamente bateu a porta na minha cara, e voltou-se para o seu pai
dizendo:
-
Aqui está a chave do seu outro carro. Não interessa o que eu faço com a minha
vida. Mas nunca mais, você está me ouvindo, nunca mais trate meu irmão desta
forma... Ele, ao contrário de você, não precisa provar que é um homem deste
jeito animalesco e nojento. Ele é mais homem por amar a si mesmo, por saber o
que é o amor...
-
Cala a boca vai... – seu pai acabou lhe dando outra bofetada – Tive um dia
horrível e quero ficar em paz, nesta casa que é minha... Olha tem um dinheiro
aqui, some... E leva aquela coisa que você chama de irmão com você... Só não
pinta muito a cara dele não, vai ficar uma bonequinha de R$1,99 e ninguém vai
querer comer o cu dele...
-
Eu quero que você... – Valkíria saiu correndo aos prantos, bateu no quarto de
seu irmão. Quando ele abriu a porta ambos se olharam com os olhos cheios de
lágrimas e se abraçaram.
-
Eu te amo meu irmãozinho...
-
Ele te bateu?
-
Isso não foi nada... Você é especial para mim, você sabe que você não é nada
daquilo que esse animal imundo diz...
-
É difícil Valkíria. Eu tento todos os dias levar a minha vida na esportiva,
fingir que isso tudo não me afeta. Mas o que eu posso fazer? Eu sou assim. Eu
não pedi para ser assim. Mas isso é o que me deixa feliz. Isso é o que eu sou?
Por que eu não posso ser um pouco mais, sabe... Normal... Um homem normal como
tudo mundo espera que eu seja?... – seus olhos encheram de lágrimas e ele não
conseguiu terminar de falar.
-
Você é normal... Você é normal... Olha para mim, você é uma pessoa como outra
qualquer... Você é verdadeiro para si mesmo, isso é mais importante do que tudo
e do que qualquer pessoa...
-
Mas eu cansei. Queria morrer como a mamãe...
-
Nunca mais diga isso!
-
É difícil quando me olham com olhares tortos, pelo meu jeito de ser. E mais
difícil ainda quando riem da minha cara, por eu ser assim desta maneira... Isso
é dilacerante... Eu sou um homem, qual é o meu problema porra? Por que eu não
sou igual, é por isso? Meu Deus... Eu apenas amo de uma forma diferente, eu sou
igual a todo mundo... Eu sempre me escondi pelas sombras, pelos medos e pelas
inseguranças... Nossa, o que as pessoas vão pensar? Mas sabe... Eu não aguento
mais, Valkíria. Para mim não dá mais. Queria saber o que eu fiz de errado para
ser assim...
-
Você é perfeito. Você é integro. Você é determinado. E acima de tudo é alguém
verdadeiro. Você é aquilo tudo que a mamãe amaria ver em um homem. E você tem
um coração tão grande... Você é o que eu queria como um filho... E você não tem
nenhum problema, você é maravilhoso. Você é lindo, você é incrível e um ser
humano admirável...
-
Obrigado... Você sempre me dizendo as coisas que preciso ouvir. Sendo a minha
segunda mãe. Tem dias que nem quero levantar da cama. Sabe o que é ser um jovem
assumidamente gay com 17 anos em um país como o nosso? Eu me pergunto muito se
me aceitar pelo que eu sou valeu a pena... Ninguém me aceita desta forma.
-
Eu te aceito, as pessoas que lhe amam te aceitam... E o resto é só o resto. Não
faz falta pessoa que não acrescenta. As pessoas acham que a arrogância que elas
possuem é o mesmo que saber sobre tudo. Mas sabe, quem acha que somos poucas
coisas e nos transformam em quase nada, não merecem nosso tempo, nossa presença
e muito menos fazer parte de nossas vidas... Merecem ser apenas o que são, e
nada mais... Vamos sair? Vamos deixar quem não vale nada no chão. Somos mais do
que qualquer coisa...
-
Preciso sair mesmo, beber e esquecer um pouco dessa vida miserável – Júnior
recuperava o seu sorriso.
-
Vamos... Só vou colocar qualquer coisa, porque até isso não estou mais querendo
fazer... Esse imundo extrapolou todos os limites.
-
Esquece ele, vai. Foca no seu Romeu moderno...
-
A hora que ficar pronto aí bate no meu quarto e descemos...
-
Ok. Vai ficar linda para o seu amor e o encontro ou reencontro tão esperado...
-
Se ainda estiver no clima para alguma coisa...
-
Está sim. Mas quero ver uma deusa, lógico que não tão maravilhosa quanto eu,
mas uma diva.
-
Engraçadinho. Você sabe que nunca, nunca ninguém vai te magoar. Eu não irei
deixar. Porque eu te amo meu irmão.
-
Eu sei. E lhe digo o mesmo. Também te amo. E um conselho: usa aquele vestido
preto que você comprou naquele dia que fomos tomar sorvete com o Max.
-
Ok. E um conselho: chama ele para sair. Ele ficou interessado em você.
-
Não Valkíria. Ele já tem dono.
-
Depois quero saber mais sobre isso... E que feio falar que tem dono. Ninguém é
propriedade de ninguém...
-
Tá, vai... Agora sai que quero me arrumar...
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