Capítulo
VI – Ciclo de Fases
(Valkíria)
Um
dia depois do outro. Pensei isso antes de acordar em definitivo. Abri meus olhos,
e pela dor de cabeça, lembrei da noite anterior e o caos que repentinamente
atingiu minha vida em cheio. Após lavar meu rosto no banheiro e retirar a
maquiagem borrada, decidi ir até a cozinha tomar um bom e forte café preto. Já
havia passado do meio dia.
-
Acordou? – disse Júnior.
-
Não quero falar com você.
-
O que eu lhe fiz?
-
Depois de tudo que aconteceu ontem você ainda tem a cara de pau de voltar para
casa com ele, e querer defender aquele...
-
Aquele o que Valkíria? Gay?
-
Não... Mentiroso.
-
Você está sendo injusta com ele Valkíria.
-
Injusta? Eu injusta? Ele nunca me disse nada sobre isso... Eu pedi para ele no
primeiro dia que nos conhecemos. Ele me garantiu que não era gay.
-
E ele não mentiu para você, ou mentiu? Toma esse café aqui, pega vai...
-
Não mentiu? Ah...
-
Ser bissexual não é ser gay Valkíria.
-
É ser o que então?
-
É ser bissexual, ora... Não confunda as coisas. Ele nunca te enganou como você
pensa. Ele ama homens e ama mulheres, ele é um ser humano que ama. Isso não é
bonito?
-
Ele não sabe o que quer, isso sim!
-
Você que não sabe o que está falando! Me desculpa... Conheço muitas pessoas e
amigos que são assim. Sabem muito bem o que querem, e geralmente querem dar o
amor que tem como qualquer outra pessoa “normal”, se pode ser dito desta forma
tão nojenta.
-
Não sei mais o que fazer. Eu ainda amo ele. Isso que eu sentia, e que ainda eu
sinto, nunca foi mentira...
-
E posso garantir o mesmo da parte dele...
-
Mas e aquele... Aquilo... Sei lá quem era aquela pessoa...
-
Um estorvo, e dos grandes. Sei sobre a história, ele me contou.
-
Como? – perguntei assustada.
-
Por isso acho que você é muito injusta. Para uma pessoa como o Valentim, que
nunca pôde confiar nem mesmo em sua família, você acha que seria assim tão
fácil se abrir com você? Vocês estão a pouco tempo juntos. Errada foi você em
não aceitar ouvir o que ele disse...
-
Mas sabe como sou... Parecia tão bom jogar com ele esse jogo. Sabe... Não saber
ao certo quem era ele, esse negócio todo de adivinhar o que ele escondia. Mas
quebrei minha cara. E em vez de fazer alguma coisa, eu saí de lá correndo sem
tempo para nada... Não sei nem o que fazer agora. Um dia após o outro
novamente...
-
Aconselho você a esperar a cabeça esfriar. Não vá lá com esses seus achismos e
concepções arrogantes... Mas fale com ele. Ele que vai ter que te explicar tudo
bem certo, eu não. Tchau, estou indo agora de tarde relaxar no parque, com o
que restou de mim da noite de ontem, e da aula de hoje de manhã...
-
Vou fazer isso mesmo, esperar. Obrigada novamente...
-
Não fique aqui se martirizando... Vai dar uma volta no parque também, tomar um
sorvete, pensar um pouco na vida. Aqui dentro você não vai achar nenhuma
resposta... Vai por mim...
-
Obrigado irmãozinho!
E
foi assim que eu pensei que as coisas passariam. Mas, eu não podia fazer nada
sem pensar naquele Valentim dos melhores dias. O Valentim que me fazia pela
primeira vez submissa aos meus próprios sentimentos.
Olhando
as pessoas na rua eu sentia que aquilo nunca acabaria. Como fazer com que a presença
daquele homem sumisse de meu corpo e do meu coração? Todo sorriso que ele
trazia para a minha memória, e o horóscopo da manhã em que eu passava os olhos
pelo signo de peixes (sim, justo eu comecei a acreditar em horóscopo), e aquele
jeito como ele fazia as coisas parecerem mais simples, menos complexas e mais
ajeitadas? Não era assim tão fácil apagar tudo aquilo.
Dentro
de mim, o Brasil fazia passeata com faixas e cartazes, pelo fim dos sentimentos
corruptos e avassaladores. Das janelas das sacadas podiam ser ouvidos os
barulhos das panelas contra o preconceito e o julgamento do que é diferente, do
que é contrário, do que não pode ser assim tão certo. E existiam muitas
mulheres e homens nas ruas, pessoas humanas e sem gêneros, coloridos com
sentimentos libertários, com o coração na mão. E as crianças com sorvetes de
vários sabores, fazendo bolas de sabão, os meninos que desfilavam na passarela de
salto alto, e as meninas com chuteiras que jogavam bola no campinho de terra
improvisado.
Dentro
de mim, o mundo passou a ser aquele tanto tão grande de amor, foi aquele abraço
apertado de uma mãe e de um pai, o sentimento de segurança de um pai e de outro
pai, aquela família tão bonita feita de uma mãe e uma mãe. Então não me contive,
e por dentro eu gritei. E o mundo todo parou naquele exato momento. E consegui
ouvir de longe outros gritos iguais ao meu. O mundo inteiro renasceu. Estava
começando um novo ciclo de fases. Meus pés foram então, até onde já deveriam
ter ido. Onde meu coração nunca deixou de estar.
-
O Valentim se encontra?
-
Não. Faz dois dias que ele não aparece aqui na academia. Se achar ele pode dizer
que nem precisa mais vir. Pelo que entendi, e não querendo me intrometer, mas
já me intrometendo, ouvi dizer que ganhou justa causa. Abandonou o serviço,
acredita?
-
Obrigada...
-
Ele é meio estranho, sempre... – interrompi a recepcionista:
-
Você não tem serviço, não? Deveriam mudar aqui sua função para fofoqueira e não
recepcionista. Cuidar da vida dos outros é feio! Sua vida deve ser bem chata
mesmo...
-
O quê?
-
Tchau, e sério... Não faz isso! Você é tão bonitinha para ser assim tão
linguaruda! – dei as costas e sai da academia, indo em direção a rua.
“Valentim
o que você fez da sua vida?”
-
Atende, por favor Júnior... Graças a Deus!
-
O que foi sua desesperada? – disse Júnior pelo telefone.
-
Você está em casa? No prédio?
-
Sim né! Onde mais?... Ainda não fui expulso de casa.
-
Sem brincadeira, desce ali no apartamento dele... Qualquer coisa me espere na
portaria...
-
Dele? Valentim? É grave mesmo?
-
Sim. Ele não veio mais trabalhar...
“Que
não tenha acontecido nada com você. Minha intuição nunca falha.” E não falhou.
Quando
cheguei no prédio novamente é que consegui compreender a ideia de que estava
perseguindo um homem que talvez nem quisesse mais falar comigo. Mas, e aquela
maldita coisa que me sufocava a ponto de não entender o que fazia e o que sentia?
Não era amor, era um pressentimento.
-
Então? – perguntei para Júnior que me esperava do lado de fora, na portaria.
-
Eu até tentei bater na porta. Várias vezes, mas ninguém...
-
Vamos chamar o Seu José. Isso não está certo...
-
Mas Valkíria, você não está se precipitando? Tenta ligar para ele...
-
Não Júnior... Você não está entendendo?...
Senti
um grande aperto no meu peito e caí nos degraus da entrada em prantos, como na época
da morte de minha mãe. Estava perdendo o meu juízo?
-
Ajuda aqui Senhor José! – gritou Júnior.
-
Não... Temos que ir lá em cima... – eu falava sufocada em prantos.
-
Mas não posso abandonar a portaria. Se Dona Lúcia me pega e conta para a
sindica...
-
Se eu o que Seu José? – Dona Lúcia acabava de sair do elevador.
-
Dona Lúcia! Estava dizendo aqui para eles que não posso abandonar a portaria e
subir...
-
Subir lá no apartamento do Valentim, Dona Lúcia – complementou Júnior, vendo
que Seu José não sabia onde deveria subir.
-
Aconteceu alguma coisa? Por que está chorando Valkíria? Subir lá? Faz dois dias
que ele nem desce aqui para baixo... Aconteceu algo? – Dona Lúcia ficou
assustada com a cena.
-
Como? – perguntei me recompondo do choro.
-
Ele... Ah! – Dona Lúcia foi interrompida por um esbarrão, quando entrei
apressada no elevador sem querer ouvir mais nada. Todos apavorados foram logo
atrás de mim, há tempo de pegar o elevador aberto.
Prostrados
na frente da porta, apesar do barulho para ele abrir, parecia não haver ninguém
lá dentro. Resolvemos de último caso abrir a porta na base da força, por uma
boa causa, se houvesse algum problema. Dona Lúcia insistia com suas observações
desnecessárias para a situação.
-
Chega vai... Abre a porta Seu José! – disse Dona Lúcia, mais por curiosidade do
que preocupação.
-
Mas Dona Lúcia...
-
Isso é uma ordem... Se ele estiver passando mal...
Com
um ponta pé bem aplicado a porta se abriu.
Fui
a primeira a entrar e presenciar aquela cena de filme de guerra. Aquele não era
o mesmo ambiente que estive com meu Valentim em outro tempo.
-
Valentim... Você está aí?
-
Vou dar uma olhada no banheiro Valkíria – disse Júnior.
-
Meu Deus! – Exclamou Dona Lúcia.
Olhei
de canto para ela, assustando até mesmo Seu José.
-
Melhor a senhora não falar mais nada Dona Lúcia – disse seu José, para
apaziguar um pouco as coisas.
-
Valkíriaaaaaaaaa.
Corri
para o banheiro desesperada, esperando pelo pior. Júnior não era de fazer
escândalo por nada. Já imaginava o que deveria ver, estirado sobre o chão do
banheiro. E lá viriam mais sessões de terapia, para poder esquecer novamente o
passado.
-
Valentim! Meu Deus ajudem, ele está passando mal, chame o resgate Júnior ele
não está bem... O que você fez com você seu idiota?
-
Isso não é hora Valkíria!
-
Eu já chamei o socorro, está a caminho... Pobre coitado... Parece que está...
Vou ir lá embaixo e ficar esperando... Qualquer coisa interfonem para a
portaria que eu subo... – Dona Lúcia mais atrapalhava do que ajudava. O melhor
momento foi quando desceu até a portaria, provavelmente fazer mais fofoca.
-
Ele estava lá com a minha vó, sentado com ela na cozinha, Valkíria. Ela me viu
e me chamou por nomes horríveis, disse que eu não prestava e que era um ingrato
por fazer aquilo com ela – Valentim respirou fundo, aquilo me aliviou um pouco.
-
Ele quem? O que você está dizendo Valentim?
-
Leonardo... Ele acordou no dia que fui fazer vestibular e contou para ela...
Ela me expulsou de casa e não deixou eu nem vê-la no hospital...
-
A sua avó? Valentim, você não está falando coisas sensatas, descansa que o
socorro já está chegando...
-
Minha Vó teve um ataque do coração quando peguei minhas coisas e fui embora
morar com ele... Eu matei minha Vó por este desgraçado... – Valentim entrou em
definitivo no seu estado de coma.
-
Chega! Calma! Tudo vai ficar bem! Valentim... Acorda Valentim... Meu Deus ele
morreu... – entrei em desespero quando percebi que nada o fazia acordar.
-
Não morreu Valkíria, acalme-se você... Ele está respirando, mas acho que está
em coma ou coisa do gênero... – disse Seu José, tentando me tranquilizar um
pouco.
-
Não Júnior, por que tudo isso? Valentim, meu amor, tudo vai ficar bem...
Tudo
vai ficar bem. Começava a entrar no meu estado de dormência emocional.
-
Valkíria... Valkíria? Você está me ouvindo? Valkíria, segura minha mão, vai
ficar tudo bem... – A voz do meu irmão
foi sumindo compassadamente até soar como um ruído distante.
-
Valkíria, segura minha mão, vai ficar tudo bem – disse minha mãe, arrumando o vestido
vermelho e rodado que eu vestia. Estava meio amassado nas extremidades de
baixo, perto dos babados.
-
Mas papai é tão estranho mamãe. Briga por tão pouca coisa...
-
É da personalidade dele. Isso não significa que ele não te ame. Você é pequena,
quando crescer vai entender. São coisas complicadas para uma menina de seis
anos.
-
Mas já sou quase crescida, sou uma mulher... Olha só!
-
Uma linda mulher com certeza! Mas tudo no seu tempo... Não atropele as
coisas... Ser pequena às vezes é muito bom!
-
Você já foi pequena?
-
Claro que sim! Não nasci deste tamanho. E era assim como você. Ruiva e com uns
olhos redondos e brilhantes.
-
E o que aconteceu com o brilho deles, então?
-
Por que essa pergunta? Ainda estão aqui!
-
Agora sim. Mas com papai eles desaparecem...
-
Você é inteligente minha filha. Um dia você irá compreender. Mamãe sempre vai
te amar.
-
Eu sei disso.
-
Claro que sabe, você sabe de tudo e um pouco mais!
-
Só não sei quando que vai nascer meu irmão, mamãe...
-
Ele é pequeno demais para qualquer um saber.
-
É meu irmão. Eu sei. Sonhei com um menino.
-
Sonhou, foi?
-
Sim!
-
Então termina seu suco e seu prato de comida.
-
Eu adoro esse lugar. É tão bom vir aqui com vocês!
-
Com vocês Valkíria?
-
Com você e meu irmão, mamãe!
-
Claro, meu anjo. Sua avó também me trazia aqui quando eu tinha a sua idade.
-
E onde está vovó Joane?
-
Termina de comer a comida... Daqui a pouco temos que voltar para casa. Se
lembra?
-
Sim. Antes que papai chegue em casa. Viu?
-
O que querida?
-
Perdeu o brilho novamente.
-
Deixe de bobeira e não diga isso, pode arrumar algum problema em casa.
-
Tá bem. Depois posso pedir pudim?
-
Claro. Como posso negar um pedido desses? Mas se lembre que seu pai não fez
isso por mal. Você está bem?
-
Você está bem? Valkíria? Valkíria? – a voz de Júnior parecia mais próxima
novamente, então eu abri os meus olhos e acordei.
-
Cadê o Valentim?
-
Ele foi levado para o hospital, você passou mal e achamos melhor deixá-la aqui,
na cama dele, até melhorar. Não adianta ir lá agora... Ele irá fazer exames
e...
-
Quero ir ver ele agora.
-
Não. Você vai ficar aqui e esperar. Quando estiver melhor vai. Como quer ajudar
desta forma? Se aquiete pessoa...
-
Preciso pedir desculpa, e se não tiver mais tempo...
-
Vai ter, já disseram que não é nada tão grave assim. Logo estará bem, aí vocês
conversam. Mas por enquanto cuide de você. Teve um ataque de nervos. E pelo
visto quer me deixar assim também... Em frangalhos!
-
Desculpa Júnior... Você como sempre tem razão.
-
Sim, tenho. Agora vê se descansa. Vai ser um pesadelo levar você até lá em
cima. Está gorda, mas não me escuta. Vai ficar aqui até melhorar e...
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