Capítulo
IX – Desculpas
(Valkíria)
-
Você realmente está bem?
-
Estou Leo, já lhe agradeço de antemão por estar me levando para casa. Júnior
precisa mais de mim do que eu mesma preciso. Não se preocupe comigo. Você mal
me conhece, eu amo o amor da sua vida, mas mesmo assim se compadece de mim...
-
Eu não sou um egoísta. Não penso só nos meus problemas. E pare de me agradecer,
assim como você que não precisa de desculpas, não preciso de agradecimentos.
-
Mesmo não precisando, obrigado. Tenho que ser forte agora, pelo meu irmão. Se
puder lhe pedir um imenso favor...
-
Pode, por que não?
-
Sei que vai vir dias difíceis pela frente. Burocracia de todos os lados, e
coisas que vou ter que resolver, porque meu irmão é menor de idade ainda. E tem
o apartamento, tem o dinheiro de meu pai, tem tanta coisa na minha vida que eu
vou precisar por em ordem... E tem o Valentim agora nesta... Eu não queria que
ele ficasse sozinho nesta hora...
-
Se o que você for pedir, é o que eu estou pensando... Ele não vai me querer
lá...
-
Eu converso com ele. Explico minha situação. Às vezes tudo é tão denso... E vou
ir todo dia lá, não quero abandonar ele também...
-
Primeiramente não abandone você mesma.
-
Ai, é complicado. Mas vamos lá. Agradeço a carona, fico por aqui. Se puder
passar seu telefone, aí...
-
Nem pensar que vou lhe deixar aqui assim, desta forma. Subo com você, ajudo
você a cuidar das coisas.
-
Não precisa...
-
Precisa sim. Não quero nada em troca. É uma ajuda de amigos, se posso dizer
desta forma.
-
Obrigad... – não consegui completar as palavras, Leo me olhou e foi
respondendo.
-
Não termine. Não precisa agradecer. Onde posso estacionar?
Ele
estacionou o carro na garagem do prédio e subimos até meu apartamento. Eu acho
que pela primeira vez, após a morte de minha mãe, eu tinha um amigo de verdade,
um que não cobrava favores e nem nada do gênero. De certa forma conseguia
entender Valentim. Leo era um ser humano extraordinário. Um daqueles homens de
catálogo! Se existissem catálogos para este tipo de homem.
Quando
entrei no apartamento consegui entender a aflição na voz de Júnior ao telefone.
Tudo estava destruído, mostrando os indícios de um homem desiludido e suicida. Júnior
estava na casa de Dona Lúcia. Quando apareceu na porta nos abraçamos, um abraço
mútuo de “tudo vai ficar bem”.
-
Como você está, meu irmãozinho? – perguntei.
-
Estou bem. Estou bem agora. Valkíria o papai...
-
Eu sei que ele não foi o pai ideal, mas agora está descansando, provavelmente
no inferno, se existir um inferno, mas...
-
Valkíria. Papai pediu desculpas para mim antes de morrer. E aquilo não sai da
minha cabeça... Ele pediu para mim sair e quando voltei ele já tinha se matado.
Ele não precisava ter feito isso desta forma...
Júnior
começou a chorar, e então eu desabei. Se abraçamos e choramos juntos,
esquecendo que existia a presença de pessoas no corredor, e que a porta estava
aberta, ou que Leo estava sentado no sofá e nos olhava com os olhos mais azuis
e cheios de lágrimas.
-
Alguém precisa ir liberar o corpo e ver do funeral – disse Dona Lúcia.
-
Deixe que eu vou – se prontificou Leo.
-
Mas tem que ser alguém da família...
-
Eu dou meu jeito – Leo respondeu secamente Dona Lúcia – Valkíria, preciso dos
documentos dele. Não acho que vão liberar sem alguma identificação, ou coisa
assim...
-
Eu vou com você – respondi me recompondo um pouco e limpando do meu rosto as
lágrimas.
-
Não, fique aqui com seu irmão. Vou com Dona Lúcia. A senhora aceita?
-
Sim. Concordo com ele Valkíria. Fique com seu irmão, arrume as coisas. Nós
cuidamos do resto – disse ela.
-
Obrigado Dona Lúcia. E Leonardo, não vou me abandonar. Você é um anjo. Vou buscar
os documentos e já volto – disse isso e sai em direção ao quarto de meu pai.
Quando voltei não hesitei em pedir – Seria muito pedir para você voltar aqui hoje?
Conversar um pouco, madrugada adentro...
-
Seria um prazer – ele respondeu e sorriu.
O
apartamento ficou vazio. Fechei a porta e fiquei com meu irmão em silêncio no
sofá da sala, olhando para aquela ruína de móveis quebrados, que enchia agora
nossa casa. Cada um sofria da sua maneira, e eu naquele momento estava sofrendo
bem menos. Talvez, porque nunca sentei conversar com meu pai, sobre as tantas
vezes que ele me batia sem motivos na infância, ouvindo apenas minha mãe dizer
que ele sofria dos nervos. Quem sabe, por ele ter tratado minha mãe como um
lixo, quando ela estava com câncer terminal, e eu no auge da minha
adolescência, cuidando dela e deixando ela partir um pouco mais aliviada, sem
as dores que a incomodavam tanto. Ou ainda, seja pela forma que ele tratava meu
irmão, vendo ele como um objeto sem valor, como um animal de estimação e nunca
como um filho, a atração principal de um circo dos horrores.
Mas
não era fria. Estava também abalada. O suicídio é uma forma muito agressiva de
morte. É como se a pessoa dissesse: “Eu não quero mais ser da sua família, da
sua vida e desta sociedade”. É como se a pessoa quisesse se retirar do mundo
antes de sua hora, sem dar explicações à ninguém e não fechar seus próprios
ciclos.
-
Você tinha notado algo de diferente nele Valkíria?
-
Não – respondi olhando para a porta da sacada.
-
Eu até achei estranho ele ter chegado mais cedo hoje, ido direto para o quarto
e depois ter ido falar comigo, pedir desculpas e coisas a mais... Ele queria
conversar, eu não dei ouvidos... Se eu tivesse...
-
Não. Mesmo se você tivesse conversado, ele faria isto. Ninguém se mata assim,
de uma hora para outra. Essa ideia já deveria estar há muito tempo amadurecendo
dentro da cabeça dele. E se não fosse hoje e desta forma, seria outro dia e de
outra. Ele era incorrigível, você bem sabe.
-
Sim, eu sei.
-
Vamos dar uma geral neste lugar? Limpar a desordem que o papai causou nesta
casa?
-
Vamos... Só agora me atentei ao fato de que você e o Leonardo vieram juntos e
estavam conversando.
-
Ele não é um mau sujeito. Foi até o hospital e conversamos muito sobre
Valentim, sobre nós mesmos. Ele é legal.
-
Legal, sei – disse Júnior tentando me animar e fazer parar de pensar maus
pensamentos.
-
Não Júnior. Ele ainda ama o Valentim. E mesmo se não amasse, eu amo o Valentim.
Então, sem essa. E ele é gay.
-
E como está o Valentim?
-
Está melhor e se recuperando. Dentro de alguns dias já recebe alta. Está até
reagindo muito bem. Logo mais estará novamente entre nós, ao menos espero, se
aceitar minhas desculpas. Ainda temos que conversar. Vou pegar uns sacos de
lixos, se quiser ir amontoando as coisas, vamos deixar tudo ali perto da porta,
depois vemos o que fazer...
A
porta da sala se abriu lentamente e me assustei, voltando para a realidade.
-
Oi, desculpa ir entrando assim desta forma, mas vim ver se precisam de ajuda – disse
Carlos, abrindo a porta e olhando para Júnior.
-
Oi Carlos, precisamos sim. Que isso, entre... Se quiser ir ajudando o Júnior.
-
Vem cá Carlos, me ajuda com essas coisas, mas veja se não é estabanado... –
falou Júnior.
-
Júnior, não fala assim! Ele veio ajudar! E toda ajuda é bem vinda agora...
Obrigada.
-
Que é Valkíria? Ele tem dificuldades para falar, vai saber se... Brincadeira
Carlos, era só para descontrair um pouco as coisas, você será de grande
valia...
E
com a casa limpa, com as coisas arrumadas, ainda sentia que minha própria
existência era vazia. Vazia das palavras daquele que era o meu pai genético e
biológico. Vazia daquilo tudo que aquele homem poderia ter feito e nunca fez.
Com meus ideais e valores que eu havia aprendido sozinha, com o mundo que
aquele homem deveria ter me ajudado a desbravar, mas não ajudou.
Então,
pela primeira vez, me ajoelhei e pedi a Deus que me trouxesse paz, roguei a
Deus para não guardar ressentimentos. E consegui dar as desculpas sinceras àquele
homem de meia idade, de cabelos meio grisalhos, que da sua maneira me amou. Que
da sua maneira me criou. E que da sua maneira e pelos seus motivos se matou.
Jogou fora todas as oportunidades de perdão, as melhores coisas que o futuro
poderia lhe reservar. Aumentou ainda mais a distância que nos separava. Não era
mais a distância de sentimentos e palavras, era a distância de uma vida. E não
teria mais as chances de fazer as coisas terem valido a pena. Ele seria agora
aquele cadáver, dentro de um caixão. Não colocaria mais o seu paletó para
fechar negócios com seus clientes, não voltaria do serviço para casa e
assistiria televisão, não olharia mais para seus filhos, não veria mais a vida
que o cercava. Permaneceria mudo, na mesma posição para toda eternidade,
enquanto o seu corpo material não virasse um punhado de ossos sem valor.
Pedi
para Deus lhe conceder um bom descanso, porque ele precisava por seus motivos.
Passei a ser menos egoísta, e não colocar meus motivos por primeiro.
E
Leo voltou já tarde. Tinha faltado ao serviço e arranjado com Dona Lúcia todas
as coisas para o enterro de meu pai. Carlos ficou conosco, com a permissão da
sua mãe (que fez um punhado de exclamações e perguntas), e nós quatro conversamos
e bebemos café preto e forte, madrugada adentro. Carlos um pouco menos,
dormindo cedo no sofá.
Quando
Júnior dormiu, resolvemos continuar nossa conversa em outro lugar, estávamos
sem sono e não queríamos fazer barulho, tinha sido um péssimo dia para todos.
Andamos algumas quadras, e já estava quase amanhecendo.
-
Obrigado por tudo Leo.
-
Já disse para não agradecer. Fiz isso porque quis. E me deixa feliz ver você
sorrir e se preocupar um pouco menos com as coisas. Você ama o Valentim e o faz
feliz, isso já um ótimo agradecimento.
-
Mesmo assim obrigada.
-
Você e seu irmão são ótimas pessoas.
-
Você também é incrível... Sabe, mesmo que o Valentim não lhe desculpe, porque
ele tem os motivos dele, assim como eu tenho os meus, e você tem os seus, saiba
que sempre terá uma amiga, e nunca estará sozinho...
E
começou a chover, uma garoa fina que apenas umedecia um pouco as coisas. Uma
garoa fina que nos aproximou, embaixo de um toldo vermelho de uma loja, e que
terminou o ciclo das desculpas. Nos beijamos. Não foi um beijo de amor, foi um
beijo de agradecimento.
-
Eu sei que não deveria ter feito isso. Você e o Valentim... – disse Leo, se
afastando de mim e tentando esclarecer os fatos.
-
Não se preocupe com os meus sentimentos e com os de Valentim. Se preocupe com
os seus. Foram os ânimos e toda essa coisa que nos aconteceu hoje... – amenizei
o fato.
-
É... Foi isso... Acho melhor irmos para casa, está amanhecendo e você precisa
descansar um pouco... Te acompanho, daí pego meu carro...
-
Fique hoje lá em casa. Você está acabado, fez muito por mim, e não aceito
recusa – disse isso enganchando meu braço ao dele e o puxando em direção ao meu
prédio.
-
Obrigado. Aceito. Não estou bem para dirigir até o outro lado da cidade hoje.
-
Sem agradecimentos, lembra?
E
ele ficou. Dormiu no quarto do meu irmão. Júnior e Carlos ainda estavam na
sala. Fui direto para a minha cama, estava pela primeira vez cansada de corpo e
alma. Quando acordei, após ter dormido apenas três horas, todos já estavam de
pé. Então se arrumamos e saímos de casa para enterrar meu pai, sem grandes homenagens
e com o caixão lacrado. Aquele foi o dia mais chuvoso do ano. A cidade ficou
embaixo d’água assim como os meus sentimentos submersos.
[...]
(Júnior)
O
que era apenas uma suspeita da minha cabeça demoníaca, espiritualmente ligada
com os astros, passou a ser uma bela realidade. Carlos, sempre sem palavras,
era um garoto cheio das atitudes. E eu gostava de homens com atitudes. Durante
a madrugada, depois que fui para um sofá próximo ao dele, notei que ele não
estava dormindo. Fiquei com meus pensamentos, até pegar em um sono leve e me
acordar quando Valkíria e Leo saíram de casa. Neste momento ele chegou até mim
e sussurrou algo como “te amo, você sempre se virou muito bem sem as pessoas”,
e aconteceu. Sim, aconteceu o que nunca esperei que acontecesse, vindo de
alguém como ele, um sujeito cheio de silêncios e palavras escassas.
-
Você acha que aquilo não foi nada Carlos?
-
É que, minha mãe não sabe, e não quero dizer isso... – sussurrou saindo do
elevador e parando para conversar comigo no corredor.
-
Acho que está na hora de começar a dizer algumas coisas. Do que adianta ficar
fechado, dentro do seu mundo sem palavras? Isso te fez feliz?
-
Não Júnior.
-
Então. Ontem ali na sala, você não estava feliz?
-
Estava.
-
E por quê?
-
Porque estava com você. Você sabe que eu gosto de você. Eu acho...
-
E se você se arriscasse um pouco mais? Sabe... Começar a viver um pouco mais a
sua vida. Já não está na hora?
-
Ontem...
-
Vai dizer que você não queria? Foi você que foi me procurar. O que não entendi
muito bem. Mas, o que nos aconteceu, fica lá se você quiser. Sem problema algum
para mim. Já estou acostumado com esse tipo de coisa. Pois é mais fácil e
aceitável achar que foi um erro, um pequeno devaneio, e não aceitar que fez
alguma coisa por escolha pessoal e própria. Culpe o sujeito que não é normal,
que saiu do armário... “Por que todo gay é indecente e gosta de sacanagem”...
Comigo as coisas não funcionam desta maneira! Mas posso ser o culpado se você
quiser, não toco no assunto...
-
Não! Me deixa tentar falar com minha mãe sobre isso? Eu não quero esquecer
ontem. E pela primeira vez na minha vida, acho que quero me entregar para isso.
Você é... Sempre foi... Você...
-
Vamos ver no que dá Carlos, sem apressar as coisas.
-
Sim, vamos. Se puder ir depois lá em casa. Me ajudaria muito!
-
Se isso realmente for necessário para você! Não quero lhe obrigar a fazer nada!
-
É necessário para mim sim!
E
depois desta nossa conversa, voltei para o apartamento com medo da reação de
Dona Lúcia, uma senhora cheia de seus próprios preconceitos. O que iria
acontecer com Carlos? Estava aéreo, e nem reparei que Valkíria estava na sala
fazendo algumas contas. Leonardo acabava de sair do apartamento, cruzando por
mim e me cumprimentando na porta.
-
E essa cara Júnior? – pediu Valkíria.
-
Oi?
-
Tudo bem com você? Sei que as coisas estão um pouco complicadas, mas...
-
Não Valkíria, estava só pensando em uma coisa que me aconteceu ontem de
madrugada, e agora a pouco... A vida é estranha, não é?
-
O que pode ser tão estranho assim, fora tudo que nos aconteceu?
-
Carlos.
-
Oi?
-
Carlos.
-
O que tem ele?
-
Nós ontem... Sabe. Não preciso falar. Aconteceu, e hoje ele disse que não quer
esquecer isso, que não foi um erro, que ele realmente gosta de mim. Mas eu não
sei...
-
Vocês?... Nossa, por isso eu não esperava também. Por que não tenta ver no que
isso pode dar? Ele é bonito, e é um bom garoto Júnior.
-
Mas e Dona Lúcia? E agora nossa vida... Sabe que sem o papai as coisas vão
mudar aqui em casa. E não sei se quero me iludir, para depois isso não dar em
nada... Tenho medo de sofrer por amor. Sofrer por sofrer já é tão complicado.
-
Deixe de palhaçada. E com relação as coisas, não se preocupe! Quero que você se
preocupe mais com o vestibular este ano, acabar seus estudos, e por que não um
casinho de amor, mesmo que temporário? Sofrer também é amar por consideração.
Se permita irmãozinho.
-
É. Desta vez você está certa. Não me custa ver no que isso pode dar... E você e
o Leo? Alguma explicação para isso?
-
Eu e ele o que?
-
Ele já faltou ao serviço por dois dias consecutivos. Acabou de sair daqui para
ir ao supermercado comprar coisas para um tal macarrão especial, saíram ontem
de madrugada para algum lugar desconhecido... Passaram dois dias inteiros
juntos, conversando sobre coisas e mais coisas! Vai rolar?
-
Não! Lógico que não! E ele é uma ótima companhia e um grande amigo. Está sendo
gentil... E temos muitas coisas em comum...
-
Como amar o mesmo homem?
-
Sim.... Isso é um pequeno detalhe... Tá. Não consigo esconder, nós nos
beijamos.
-
Ahm? Vocês o que? Amigos não trocam beijos... E ele é gay.
-
Mas, não significou muita coisa para ambos. Já foi esclarecido.
-
E o Valentim?
-
Da minha parte posso dizer que ainda o amo muito. Passei no hospital novamente.
Agora é com ele. E... Ele fica chamando pelo Leo. De uma forma estranha, fica
dizendo coisas... Como se ele estivesse preso no próprio passado, ou coisa do
gênero.
-
Complicado, preciso ir ver ele no hospital, com todas essas coisas que acabaram
acontecendo e mais as coisas de copiar as matérias atrasadas... Vou ir tomar um
banho. Adoraria ficar para o jantar, mas vou ali na Dona Lúcia. Tenho que tirar
o Carlos do armário!
-
Hahahahahahaha... Boa sorte!
-
Não se peguem na minha ausência! Com licença, obrigado.
-
Que parte do “não significou nada para ambos” que você não compreendeu?
-
O que ouvi foi: “não significou muita coisa”. Então alguma coisa significou. E
cansei de significar e de significado. Essas palavras me irritam. Fuiiii...
-
Hahahahahahahaha...
[...]
(Valentim)
Havia
acordado do meu coma temporal. A primeira impressão que tive era que estava
morto, como nos filmes e seriados, onde colocam um pano sobre o corpo e o guardam
dentro de imensas gavetas. Abri meu olhos e percebi que estava coberto apenas
por um lençol fino, que ia dos meus pés até meu pescoço.
Não
poderia estar morto. Estava em um hospital. Na minha mão esquerda haviam
colocado um cateter venoso, por onde passavam a minha medicação e o soro. Minha
cabeça estava como em um redemoinho, e conseguia ouvir uma velha vitrola que
tocava a minha música favorita, vinda de um quarto distante ou pela janela
lateral do quarto. Precisava sair daquele lugar e ajeitar a minha vida.
Confrontar o passado e restabelecer o presente.
Ainda
meio tonto consegui me colocar de pé ao lado da cama, com a visão um pouco
embaçada. Na minha alucinação, sentia que a música ficava mais alta e que uma
enfermeira segurava meu braço inúmeras vezes, pedindo que eu ficasse deitado na
cama. Não sabia se aquilo tudo era real. A música foi se silenciando, mas a imagem
da enfermeira não desvanecia.
Apenas
quando a tontura passou e eu consegui ter o domínio sobre meus pensamentos, foi
que percebi que a enfermeira era feita de matéria, e não apenas ficção da minha
cabeça. Eu olhei para ela e firmemente falei:
-
Leonardo! Eu preciso falar com o Leo!
-
Se acalme! Vou chamar o Médico. Já é noite, se acalme, por favor.
-
Só preciso falar com ele e não com um médico... O que estou fazendo aqui?
-
Se acalme! Você está no hospital. Misturou muitas drogas e por isso está aqui.
Posso chamar a sua namorada... Só temos o contato dela aqui... Agora deite.
- Leonardo, eu quero falar com o Leonardo!
-
Se acalme, o médico está vindo, e vamos ligar... Mas você tem que ficar
tranquilo e deitado, ok?
-
Eu cometi um erro... Preciso me desculpar com ele!
-
Vamos ligar para a moça, ela vai pedir para ele vim, mas se acalme, por favor.
Então
me deitei, e esperei o médico me analisar e dizer que estava tudo bem, que não
deveria mais fazer este tipo de coisa, e tantas coisas a mais, coisas que
pareciam importantes mas que não dei muita bola. Chegou a me sugerir um grupo
de apoio, eu apenas acenava com a cabeça, concordando com todas as coisas que
ele falava, era mais fácil do que contra-argumentar e explicar à ele os meus
reais motivos. Quando ele acabou insisti novamente:
-
Preciso falar com o Leo... Eu posso aceitar tudo isso, que o senhor tanto me fala,
desde que me traga o Leonardo aqui. Preciso disso, eu acho que compreendo um
pouco as coisas agora...
-
Ele está desde antes chamando-o Doutor... Não estamos no horário de visitas,
mas... – disse a enfermeira, ainda um pouco assustada com minhas reações.
-
Ligue para aquela moça e explique a situação, se ela permitir deixe que esse
Leonardo entre ver o paciente. E vê se cumpra com a sua palavra, ouviu
Valentim? Você é novo, tem a saúde de ferro, mas pode ser que não exista uma
próxima vez!
[...]
(Valkíria)
O
macarrão não tinha nenhum gosto especial, e nem se comparava ao macarrão de
Valentim. Mas, para alguém que não comia nada decente, por dois dias
consecutivos, aquilo parecia muito saboroso. Só precisava do abraço carinhoso
do meu amor, aquele que ele sempre me dava quando nos encontrávamos nos fins do
dia, ou quando almoçávamos juntos na Casa de Massas.
Leonardo
era, a princípio, muita coisa para alguém como eu conseguir digerir. Ele amava
o meu homem, e o amou muito antes de mim. Passaram anos morando juntos, e
dividiram experiências das quais eu não participei. Os dois eram um passado
desvanecido, mas não superado. E como superar o amor?
-
O que você fez por ele redime um pouco as coisas, eu acho... – havia pensado
alto como de costume.
-
Como?
-
O macarrão estava muito bom Leo! Divaguei em um assunto que não sai da minha
cabeça.
-
E que assunto seria este, posso saber?
-
Por que você fez aquilo por ele?
-
E por que não fazer? Ele não me amava mais, mas meu sentimento continuava o
mesmo, e ainda continua se posso dizer isso sem causar algum problema...
-
Sem problemas, já disse isso... Mas como?
-
Como eu havia lhe dito aquele dia no Café. Na última vez em que conversamos,
Valentim disse que não daria mais certo, porque vivíamos vidas diferentes... E
o Predador morreu de alguma forma naquele dia. Eu só precisava me desculpar,
mas ele não disse que me desculpava. E quando saí de lá, pela primeira vez na
minha vida, fiz uma coisa decente para redimir meus atos, e também a minha
culpa, não posso mentir. Procurei um bom advogado e junto com ele consegui
tirar uma boa quantia de meu pai. Com este dinheiro fui até Madame e comprei a
liberdade de Valentim. Ele não podia deixar de trabalhar com ela, pois havia assinado
um contrato bem restritivo sobre isso. Apenas ela poderia lhe dispensar de seus
serviços, se posso dizer assim. E percebi que aquilo matava aos poucos toda a
vida e o homem que ele era. Ela aceitou a oferta e o mandou embora. Tratamos
que uma pequena parte ficaria para ele, e foi com isso que ele comprou o
apartamento...
-
Mas e quanto a você? Aquele dinheiro era seu...
-
Valentim me ajudou quando todos ao meu redor estavam contra mim. Quando meus
pais me expulsaram de casa. Com nós juntos, tudo sempre parecia fazer algum
sentido... Sabe, todas as coisas que nós passamos. Na minha cabeça seriam por
um bem maior, sempre fui muito positivista. Uma parte do dinheiro ficou com o
advogado, outra com Valentim e outra com Madame. Nunca quis o dinheiro do meu
pai, aquele homem arrogante e intransigente. Mas foi muito bom ver ele perder
um pouco da sua fortuna para mim. Ele já me fez passar por maus bocados, e acredito
muito na lei do retorno. Dê aquilo que você quer receber de volta. Por isso o
amei mesmo não sendo amado. Isso me fez bem. Isso ainda me faz bem. E hoje
estou realizado naquilo que mais gosto, não ganhando tudo aquilo que sempre
imaginei, mas as coisas fazem sentido e valem muito a pena!
-
Você me faz aprender muito. Onde esteve todos esses anos? Acho bonito tudo isto
que você fez por ele, se posso falar desta forma, sem aduzir ao passado.
-
Não, sem problemas. Não vivo mais naquele tempo. Foram outros tempos, em outras
situações e lugares.
-
Mas e se...
-
Se...
-
Se o Valentim ainda tivesse coisas não resolvidas com você?
-
Acho pouco provável. Naquele dia tudo ficou bem claro, pelo menos da parte
dele. Ele não me perdoou, e acho provável que isso não aconteça tão cedo, quem
sabe algum dia...
-
E se ele estivesse afim de lhe falar alguma coisa?
-
Que tipo de coisa? Eu não sei se estaria tão receptivo a mais palavras pesadas
e expressões inexoráveis.
-
Pois bem, eu preciso lhe dizer que...
O
telefone estava tocando, e aquele barulho fez com que eu perdesse o foco do
pensamento que estava me levando ao passo seguinte, o das palavras que eu não
poderia guardar apenas para mim.
Era
do hospital, Valentim havia acordado e estava chamando por Leo. Estava sendo
injusta com ele. Para falar a verdade, tinha medo de perder Valentim para alguém
que o conhecia muito melhor do que eu.
-
Como estava dizendo, e eu preciso lhe dizer...
Coloquei
novamente o telefone no seu lugar e me aproximei da mesa.
-
Valentim não para de lhe chamar. Desde o dia que você foi até o hospital, e ele
ouviu a sua voz. Não sei bem ao certo o que é isso, mas ele parecia estar preso
em alguma lembrança muito forte do passado. E essa lembrança era sua. E como já
esperava, acabou de acordar e está chamando por você...
-
Por mim? Ele acordou? Como assim?
-
Sim. Eu irei vê-lo depois, mas eu peço que você vá antes. Ele quer conversar
com você. E conte para ele sobre todas essas coisas bonitas, que você se propôs
a fazer sem esperar nada em troca.
-
Eu... – Leo não sabia ao certo o que fazer.
-
Vai. Isso vai ser bom para ambos.
-
E quanto a você?
-
Eu estou bem. Nunca estive tão certa sobre alguma coisa na minha vida. Vou
cuidar desta louça e depois passo lá – disse isso com uma imensa dor dentro da
minha alma.
-
Obrigado Valkíria!
-
Não precisa agradecer, se lembra?
-
Não que tenha alguma esperança, sobre eu e ele. Mas só de poder resolver as
coisas já estarei mais aliviado. E se for para lhe ver triste, eu abro mão
desta visita sem cogitar...
-
Como você mesmo já me disse: pense um pouco mais nos seus sentimentos. Não é um
homem como o Valentim que vai fazer com que nos afastemos, não é?
-
Não. Nem como ele e nem como outro homem qualquer.
-
Amigos? – Demos nossas mãos.
-
Amigos.
E
Leonardo saiu do apartamento. Se fosse para ser iria ser. Não estava mais sobre
o meu controle. Fiquei com meus pensamentos atormentados e com o telefone que
não parava de tocar.
-
Alô...
-
Valkíria? – Pediu uma voz grave do outro lado da linha.
-
Sim, é ela.
-
Gostaria de ver se amanhã é um bom dia para você?
-
Bom dia? Para o que, meu senhor? Quem é você?
-
Desculpe não me apresentar. É da firma que seu falecido pai trabalhava, meu
nome é Lopes. Temos um testamento e uma carta para ser entregue à você. Sei que
o momento é difícil, mas o quanto antes resolvermos tudo isto é melhor, você
não acha?
-
Testamento? E que carta?
-
Podemos nos encontrar amanhã? Você e seu irmão?
-
Claro! Aonde e que horas?
-
Pode ser na sua casa mesmo, se for conveniente para vocês! O horário que for
mais propício...
-
Sim. Pela tarde sem problemas, assim meu irmão estará em casa. Pela manhã tem
aula.
-
Então feito. Pelo fim da tarde passarei aí e levarei toda a papelada.
-
Aguardarei. Tem meu endereço?
-
Sim. Temos nos dados cadastrais de seu falecido pai.
[...]
(Júnior)
Se
eu bem conhecia Dona Lúcia, grande parte das coisas que seu filho falasse
seriam por minha culpa. Eu era o gay. Para sempre entrajaria os adjetivos mal
agradecido e afeminado, respondendo pelo crime de levar o seu único filho para
um caminho torto. Um caminho de pecado, considerando sua fervorosa devoção. Não
esperava menos do que isto de alguém que tinha um pensamento atrasado,
retrógrado, já ultrapassado. O que esperar da mulher que comprava frutas pela
manhã para poder espiar os vizinhos durante o resto do dia?
-
Então? O que é assim tão importante que você só poderia falar quando o Júnior
chegasse Carlos?
-
Bem... Mãe... Eu acho que você... Bem... Me desculpa...
-
Fala menino! Desculpa pelo que?
-
Fala logo Carlos! Não tem por que não dizer! – Tentei deixá-lo mais confiante.
-
Júnior, se for para dizer que meu filho é, sabe... Eu já sei. E não precisa se
desculpar por isso Carlos!
-
Como? Já sabia que seu filho era gay? – perguntei.
-
Sim. Qualquer mãe no mundo percebe isso. Ainda mais uma mãe como eu,
superprotetora. Eu já tinha minhas suspeitas. E ele sempre falava tão bem de
você, que percebi que isso não era apenas comentários desconexos. Ele nunca foi
tão bom assim com as palavras quanto eu. Mas tem um enorme coração, é um bom
garoto. E já sabia que ele era isso...
-
Gay, mãe.
-
Isso, gay Carlos. Não me surpreendo com isso. Só estava esperando você me
contar. Sabia que você teria a sua forma, e o seu jeito. E não vou deixar de
lhe amar menos por isso. Eu sempre lhe disse, que independente daquilo que lhe
fizesse feliz, não fazendo mal para outras pessoas, lhe apoiaria. E nunca menti
sobre isso meu filho. Você acha, que uma mulher bisbilhoteira como eu, não
ficaria atenta para as coisas que aconteciam dentro da sua própria casa?
-
Espera aí... O que ele comentava sobre minha pessoa? Agora eu que fiquei
curioso!
-
Eu sempre disse para ela que você era bonito, espontâneo, e forte pelas coisas
que passava todos os dias... – Carlos respirou e falou rápido, ficando com o
rosto avermelhado.
-
Só pelo adjetivo bonito já deduzi tudo. Não era um bonito para elogio Júnior...
-
Não era mãe?
-
Não meu filho. Às vezes você é muito ingênuo! Diz coisas sem perceber. Então,
como é? Vocês dois estão juntos? Faço gosto desta relação!
-
Tudo ao seu tempo, ele me disse – Carlos respondeu apontando para mim.
-
Disse e repito. Tudo ao seu tempo. Primeiro, não esperava ouvir isso da
senhora, muito menos esta sua atitude. Ok? Meu Deus! E por segundo, eu não sei
se isso vai dar certo, como vai dar certo, quando vai dar certo ou se vai dar
certo. Mas podemos tentar nos conhecer e ver no que dá...
-
Mas nada de sem-vergonhice. Meu filho é gay, mas não sem-vergonha!
-
Não cogitei esta possibilidade Dona Lúcia. Até por que, é o seu filho que tem
muitas atitudes rápidas para poucas palavras...
-
Eu posso falar? – Pediu Carlos.
-
Já deveria ter falado meu filho... – disse Dona Lúcia.
-
Não quero apressar as coisas, mesmo lhe amando...
-
Ok. Agora eu não entendi mais nada... – fiquei olhando para o rosto de ambos,
que me encaravam como se eu precisasse responder alguma coisa.
Valkíria.
Como sempre, Valkíria me salvava de situações constrangedoras. Olhei para meu
celular que acabava de receber uma mensagem. Ela queria urgentemente falar
comigo. O que de tão grave teria acontecido?
-
O que foi Júnior? – perguntou Dona Lúcia, vendo que meu rosto havia mudado de
uma hora para outra.
-
Valkíria. Precisa falar comigo urgentemente. Eu gostaria de terminar esta
conversa, mas preciso ir... Se falamos. Acho que é grave, e não posso deixar
ela me esperando. Agora é com vocês, com licença...
Um
pedaço de mim estava aliviado por sair daquela conversa tão estranha, que
tomava um rumo cada vez mais assustador para alguém como eu. Não é que não
estivesse pronto para um relacionamento, mas ele não era o tipo de pessoa em que
me afeiçoaria tão fácil. E não digo isso por beleza, isso pouco me importava, e
ele era muito bonito para os meus parâmetros. Mas era de poucas palavras, ainda
era muito cru para o meu mundo. Um mundo em que se mostra a face à tapa. Aquele
mundo monstruoso que me julgava todos os dias, e que não tinha mais nenhum
significado. Eu tinha aprendido a ver a beleza onde ela se fazia inexistente,
nas paredes pichadas das calçadas, nas flores do canteiro da avenida, nas
árvores coloridas do condomínio, nas pessoas com seus sorrisos e dentes. Mas o
que de tão urgente afligia Valkíria? Independente do que fosse, passou a me
afligir também. Dois passos e meio depois, abri a porta de casa.
-
Fala logo Valkíria. O que aconteceu? Estou aflito... – cheguei gritando.
-
Um tal de Lopes ligou aqui em casa. Ele vai vir amanhã no fim da tarde para
trazer o testamento e uma carta do papai – disse ela do seu quarto, vindo em
direção a sala, onde me encontrava.
-
Como assim? Existe um testamento e uma carta? E como saber se esse Lopes é de
confiança ou não quer nos aplicar um golpe?
-
Seja o que for, vou pedir para um advogado de confiança acompanhar. Ele vai
trazer uma papelada, aí se for alguma fria teremos ajuda jurídica.
-
Sim. Isso é muito estranho. Esperar por amanhã e ver o que é...
-
Bem, vou ir até o hospital. Preciso ver Valentim. Acordou do coma. Chamando por
Leo, mas mesmo assim está acordado – disse isso terminando de colocar seus
brincos na orelha, pegando a chave do carro sobre a mesa.
-
Vou com você. Só tirar esta roupa e colocar outra...
-
E o que aconteceu na casa de Dona Lúcia?
-
No caminho eu lhe conto. Você não vai acreditar! – sai correndo para o quarto.
[...]
(Leonardo)
Eu
queria conversar com Valentim sem agressões ou distorções, de uma forma
sincera, desde o dia que ainda estava na presença do predador (já sucumbido
pelo tempo) no estabelecimento de Madame, onde ele mandou eu ir embora de sua
vida. Não sabia mais se aquilo tudo que eu sentia ainda era amor, ou apenas
mais um vislumbramento que não havia desapegado das minhas memórias. Havia
passado muito tempo, éramos pessoas diferentes, seguindo vidas distintas. Meu
coração bateu e bateu, bombeando mais sangue do que o convencional para meu
corpo. Entrei no quarto e Valentim olhou nos meus olhos.
-
Os mesmos olhos azuis de sempre!
-
Algumas coisas não mudam Valentim! Como a cor dos olhos e sentimentos
verdadeiros.
-
O passado também não pode mudar.
-
Mas pode ser remediado – respondi sorrindo.
-
Eu precisava muito falar com você...
-
Sim, Valkíria me disse. Pediu para vir aqui. Daqui a pouco ela chega também.
Ela foi muito prestativa com você. Ela realmente lhe ama, e muito. Mesmo com o
pai falecendo...
-
O pai dela morreu? – ele mudou de feição na cama.
-
Sim. Se suicidou. A vida dela está um caos...
-
Vocês?
-
Se entendemos. Mas somos apenas amigos, se é o que você quer saber. Sabe que
sou gay. Ela te ama muito, não faria e nem fez nada que não fosse digna da sua
confiança. Ela não sou eu, para trair os seus valores morais...
-
Eu precisava lhe pedir desculpas, pelo que falei na última vez que nos
encontramos. E também pela garrafada aquele dia na festa. Estava fora de mim...
Em ambos os casos estava fora de mim.
-
Eu que deveria estar de joelhos lhe pedindo desculpas. Não deveria ter
acreditado naquela...
-
Não precisa voltar para este assunto. Tudo aquilo ficou lá. Apenas isso... Essa
coisa não resolvida sobre nós...
-
Sobre nós? Então ainda existe um nós?
-
Eu não sei mais se esta forma de nós. Eu não me engano com relação à Valkíria. Eu
a amo muito. O nosso nós está muito confuso e desfigurado na minha cabeça...
-
Entendo – respondi, não deixando espaço para reviver esperanças.
-
É essa coisa toda de coma temporal. Fiquei vivendo e revivendo o passado. E
sabe. Aquilo que nos aconteceu era tão bonito... Não poderia virar tanto ódio e
ressentimento... E ainda acho que te amo de alguma outra forma.
-
Não da forma que eu gostaria. Mas isso para mim já é muito significativo. Saber
que as coisas podem acabar bem para você e para Valkíria. Para todos, sabe. Não
me arrependo de todas as coisas boas que fiz. Posso ter apanhado nas ruas, sido
expulso de casa, internado naquela clínica de reabilitação... Mas tudo valeu a
pena! Meu único crime foi ter amado você. Amado um homem masculino, sendo um
homem masculino. Eu não preciso mais chorar pela vida que eu tive. Preciso
sorrir pela vida que eu tenho. E aceitar, que todo aquele passado acabou. E que
hoje eu tenho coisas muito melhores, a sua amizade e a amizade de Valkíria, e
de tantas outras pessoas que entraram no meu caminho. Não me sinto sozinho e deslocado.
Eu sou mais um, não um diferente. E isso ninguém poderá tirar de mim.
-
Não. Isso ninguém irá lhe tirar.
Nos
abraçamos, da maneira que foi possível. Valentim ainda estava deitado na cama
com soro na veia. E ali morreu um grande amor, mas nasceu um amor maior ainda:
uma grande amizade. Percebi que com ela nascia um homem mais aliviado, um novo
Valentim.
-
Valentim? – Era Valkíria que acabava de entrar no quarto com Júnior.
-
Valkíria, meu amor. Precisamos muito conversar. Estava com saudades, espero que
você me perdoe...
Ele
não conseguiu acabar de falar. Ela o beijou da forma que eu o beijava, nos
nossos primeiros encontros e descobertas. E aquilo não me fez mal, fiquei feliz
e realizado pelos dois. Não esperava menos do que aquilo.
-
Vamos deixar eles conversarem. Devem ter muitas coisas para dizer um para o
outro – disse isso olhando para Júnior, que mal teve tempo de cumprimentar
Valentim – Nos vemos outra hora. Obrigado Valkíria, e obrigado Valentim.
-
Concordo com você, vamos. Venho amanhã ou depois – respondeu Júnior.
Saímos
do quarto, e ainda do corredor eu pude ouvir a frase que esperava:
-
Valkíria, você aceita o meu passado? Eu sei que cometi muitos erros, você já
deve saber, mas é você que eu amo.
-
Mesmo se não aceitasse, isso não importaria Valentim. Eu sou o seu presente e é
com você do presente que quero fazer o meu futuro. Você é o eu em mim...
-
E em mim você é o eu, meu amor.
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